Memórias do Rio de Ia

Sou do tempo em que falar de ônibus circulando pela Barra dos Coqueiros era puro pedantismo. Também sou do tempo em que a Barra tinha mais coqueiros, (e quem sabe pelo tempo em que você está lendo essa crônica, possa ser que lá não existam mais, por isso que também digo que: sou do tempo que a Barra ainda tinha coqueiros), os quais povoavam a longa passarela que percorríamos rumo às margens do Rio, e assim atravessá-lo com destino a Aracaju. Meu pai aproveitava a vegetação local para me apresentar conceitos de geografia.

-Rafaela, você sabe por que aquela pequena lagoa permanece sempre cheia?!

- Não . Por quê?

- Você está vendo aquela vegetação ao redor da pequena lagoa?! É por causa dela que a lagoa não seca, isso se chama Mata Ciliar ou de Galeria, o intuito dela é proteger a água e evitar a erosão da lagoa, enquanto existir essa vegetação a lagoa permanecerá cheia em tempos de chuva ou não...

Assim ia a nossa caminhada e nossas conversas. Cada passo e cada olhar valiam uma nova descoberta e meus primeiros conhecimentos sobre o mundo.

Mas lembro-me que eu gostava mesmo era chegar próximo ao Rio. Entretanto não me lembro claramente quando comecei a pensar que o rio ele era meu, ou melhor, seria meu. Isso mesmo! Desde minha tenra idade tinha certeza que eu iria herdá-lo, no meu íntimo algo me dizia que o Rio pertencia ao meu pai. Ele era o majestoso conhecedor daquelas terras e dono daquele Rio. Então em minha mente pueril, nada era mais justo de dar ao rio o seu nome. Em minha imaginação ele era o Rio de Ia, uma vez que era de Ia que eu chamava meu pai.

Ah!... Não foram raras as vezes que eu o atravessava nos tó-tó-tós ( pequenas embarcações mercantes, denominadas dessa forma pelo barulhos que o motor fazia quando fazia a travessia do rio). Ocorre que meus ânimos naquele momento ficavam eufóricos, e passava todo o trajeto berrando:

- Olha o Rio de Ia. Esse rio é do meu pai, esse rio é meu. Rio de Ia...

Acontece que minha primeira desilusão de criança não foi descobrir que Papai Noel não existia, e sim saber que aquele Rio não era do meu pai, e que ele nunca seria meu... Descobri que ele não se chamava Rio de Ia coisa alguma. Seu nome era Rio Sergipe, e chama-se assim porque antes de mim alguém o denominou em tupi de Rio de Siris. Também soube que ele era bem maior do que eu pensava, ele vinda de longe da Serra Negra, na divisa entre Bahia e Nossa Senhora da Glória, e que ele estava ali entre a Barra e Aracaju pra enfim ter seu encontro com o mar, desaguando no Oceano Atlântico...

Entretanto, com o passar dos anos o Rio Sergipe vem sofrendo mudanças... Pelo fato de ele passar por cerca de 25 cidades do Estado, percorrendo 210 Km até o oceano ele vem recebendo esgoto urbano de todos esses municípios, os peixes que ainda existem lá não conseguem chegar ao tamanho ideal, morrendo antes disso. Ele sofre quotidianamente além de esgoto sem tratamento e muito lixo, o desmatamento e aterramento dos seus manguezais. Somente 34% do esgoto de Aracaju é tratado, os 66% são despejados no rio que chega a cheirar mal, como forma de pedir socorro.

Hoje ele não parece o mesmo dos meus passeios na infância de tó-tó-tos... E penso que ele poderia está bem diferente, se não fosse a situação de abandono. O que me leva a acreditar que depois de mim, parece que mais ninguém se sentiu dono dele...

Rafaela Barreto
Enviado por Rafaela Barreto em 21/08/2012
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