O cidadão, o profissional e o homem público

Algumas vezes, em meus escritos, disse estar saturado de relatar as falcatruas de boa parcela dos políticos brasileiros. É verdade. Os desmandos dessa gente enriquecem, negativamente, suas crônicas diárias. As denúncias são muitas e as punições escassas. Intocados pela Justiça lenta e cega, mais cega do que lenta, concorrem para acelerar o processo de degeneração da moral e dos bons costumes, e ainda fazem, também de forma negativa, escola para a geração atual e a posteridade. Lamento que seja assim!

Hoje, falarei de uma pessoa que venceu na vida por seus próprios méritos, sem esquecer a contribuição exemplar à família e à sociedade, como cidadão, profissional e homem público. Trata-se de José de Souza Maciel, nascido na Fazenda Catolé, município de Cajazeiras, estado da Paraíba. Falarei do cidadão, do profissional e do homem público, com denotado orgulho, por ter sido meu tio-avô, a quem minha inesquecível avó, Francisca de Souza Maciel, venerava por ser seu ilustre irmão.

Antigamente, a importância de uma família era aquilatada pela existência de um dos seus membros como sacerdote da Igreja Católica. José de Souza Maciel, nascido em 27 de agosto de 1876, o primogênito de João de Souza Maciel e de Maria Benvinda de Lira Maciel, meus bisavós, foi escolhido para ser clérigo, título que enobreceria a família.

Sem denotar vocação para o sacerdócio, José Maciel estudou, contra sua vontade, no Seminário São José, fundado em 1875, na cidade de Crato, no Ceará. Em certo período de férias, recebeu do seu genitor a incumbência de vender uma partida de algodão, em Campina Grande, na Paraíba. Após vender a mercadoria, juntamente com os animais e arreios, apossou-se do produto da venda e mudou-se para Salvador, capital da Bahia, levando consigo a vontade de tornar-se médico. O ousado gesto somente foi perdoado por seu pai, alguns anos depois.

Em terra estranha, com parcos recursos materiais, sem dinheiro e sem nenhum apoio, nem mesmo da família, que o ignorou por algum tempo, conseguiu superar as dificuldades e tornou-se médico, em 12 de agosto de 1903, na primeira faculdade de medicina do Brasil. Naquele dia, o jovem doutor defendeu a tese "Há orchite por esforço?" Aprovado com distinção e ostentando o título de “Doutor em Medicina”, iniciou a vida profissional na pequena cidade de Itabaiana, no interior do seu estado natal. Tempos depois, mudou-se para a capital, a então Parahyba e atual João Pessoa, denominação destinada a homenagear o seu governador, assassinado por João Dantas, em Recife, em 1930.

O doutor Higino Brito, em trabalho apresentado à docência da disciplina de História da Medicina, da Universidade Federal da Paraíba, por ocasião da passagem dos cem anos de nascimento de José de Souza Maciel, disse, em sua dissertação: “É uma homenagem a quem a ela tem direito e que, ao ir-se para os páramos insondáveis da Eternidade, poderia ter repetido Tagore (Rabindranath Tagore, diplomata, escritor e o maior poeta indiano, nascido em 7 de maio de 1861): ‘Obrigado, Senhor, por ter nascido’. E, acrescentamos nós: por ter sido honesto e leal para com a vida, a medicina, a terra e os homens”.

No prefácio do trabalho acadêmico de doutor Higino Brito, assim se expressou o doutor Everaldo Soares, professor do Centro de Ciências da Saúde (antiga Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Paraíba), referindo-se ao doutor José Maciel: “Agradeço a missão de dizer algo do grande e saudoso médico que foi Maciel, mais de uma vez citado em livros de José Lins do Rego”.

Doutor Maciel foi um sacerdote da medicina de sua época. De raciocínio rápido, cuidadoso, decidido, franco e estudioso, era dedicado à profissão. Certa feita, analisando um caso em que pairava dúvida quanto ao diagnóstico de doença fatal, efetuou a autópsia do cadáver, a primeira realizada na Paraíba. Outra vez, em Itabaiana, foi obrigado a amputar a perna de um operário que caíra do alto de uma ponte em construção, a cargo da empresa Great-Western, sobre o rio Paraíba. A fratura com a fragmentação do terço inferior do fêmur e o despedaçamento de nervos e tendões exigiam providências imediatas. Foram muitas as dificuldades: os instrumentos cirúrgicos eram modestos, as farmácias locais não dispunham de clorofórmio e de éter, para efeito de anestesia, o deslocamento da vítima para a capital não era recomendável, considerando a distância, a segurança e a urgência do caso. Tudo concorria para que o doutor José Maciel efetuasse a cirurgia precariamente. Os procedimentos de amputação foram concluídos com a utilização de um serrote, novo, e com o emprego de uma garrafa de cachaça, para desinfetar os precários instrumentos, e também para “anestesiar” o paciente. O ato improvisado de serrar o fêmur da vítima e a regularização do cotoco da perna foi um sucesso. Doutor Maciel costumava dizer: “Eu te operei, Deus que te cure”.

José Maciel também foi político. E dos bons. Na época em que um fio do bigode honrava a palavra empenhada, o ilustre esculápio paraibano dividiu os saberes da medicina com as artimanhas políticas. Elegeu-se vereador por João Pessoa, em 1928, deputado estadual, em 1935, por duas legislaturas, presidente da Assembleia Legislativa e governador da Paraíba. Segundo o doutor Higino Brito, José Maciel fez par, na Assembleia Legislativa, com ilustres médicos do seu tempo, “a mais luzidia bancada que a classe médica já teve naquela casa legislativa”. Tempos depois, decepcionado com a política, abandonou-a definitivamente. A medicina era o seu mundo, aonde se sentia realizado.

José Maciel participou ativamente das iniciativas literárias e culturais de João Pessoa, ao lado de José Américo de Almeida, Augusto dos Anjos e Américo Falcão, ilustres poetas que honraram o nome da Paraíba. Como jornalista, escrevia para jornais e revistas, inclusive de cunho científico. Na Sociedade de Medicina e Cirurgia da Paraíba encontra-se farta colaboração de José Maciel. Como homem de letras, era versátil. Escrevia sobre política, literatura, poesia, finanças, problemas sociais e médico-sociais.

Na conclusão do trabalho de doutor Higino Brito, denominado "O Profissional da Medicina, o Homem Público e o Cidadão", lê-se:

“José de Souza Maciel teve o senso de não querer forçar horizontes nem descobrir céus desconhecidos. Fez-se dono de si sem nunca pretender ser deus de ninguém. Venceu a vida porque superou a morte, plantando na história da sua terra, da sua profissão e da sua gente um nome imortal”.

Seguindo o exemplo ou dotados de justificáveis desejos de também ser médicos, muitos de minha família optaram por exercer a divina arte de curar. Hoje, esposa, filha, genro e primos, de variado grau de parentesco, constam da galeria em que despontam Hipócrates, Galeno, Avicena e outros expoentes da ciência e da arte médicas.