A PALAVRA REAL
A palavra real nunca dorme. Não, ela vive rabiscando verdades por aí. Como um livro reunido de poesias, porém, sem fantasia. Sim, como um real que compra dois pães para alimentar um mendigo. Tudo me será difícil de dizer: não há suavidade nem leveza. Há apenas dureza. Sem fantasia. Sem criança. Sem nem sequer sombras de um parque inabitado.
- Mamãe, quero um pedaço de bolo! – pede a menina Sofia.
- Não tem, minha filhinha. Só tem um pão. Mas coma. É para você.
- Mas mamãe, e a senhora? Vai ficar com fome? Faz dois dias que não come.
Silêncio.
Mas é desta forma que a realidade se impõe: gritos de morte. Gritos de não viva, gritos de não sonhe. Ora, mas sem fantasia... Sem a infância, tudo será dureza. Não recordarei de meus desenhos, nem das vezes que apanhei de mamãe. Sim, como é bom lembrar dos castigos que mamãe me dava. Porque hoje entendo: é que o amor tem múltiplas faces. Uma delas é a gloriosa certeza do amanhecer.
Como posso, então, viver, se este excesso de nada me arrasta para a desumanidade? Dizendo aos humanos que eles têm que pagar impostos, que têm que construir, edificar, e modificar? Não, eu não quero me sentir um produto enlatado. Quero um brinquedo, para me sentir útil. Assim, terei memória. Para achar que posso ter consciência. A palavra real é impiedosa. Ela fere-te e te cospe. Cuspe de sangue e de não vida.
Mas agora chegou a hora de pulsar. Não quero esse real tolo. Quero o real que também é fantasia. Quero o real que me leve sem ter para onde ir. Onde eu possa correr dentro de mim e chegar até à esperança. Onde meu passado e meu futuro se fundam em véspera. Sim. Quero um cenário agressivamente calmo. Escola. Livros novos. Não quero matança. Nem que a áspide do Éden me dê um fruto podre. Isso é o real-pessimismo, mas eu quero a dança que faça meu corpo se alegrar. Com respeito, com virtudes.
- Mamãe, e água? Tem pra beber?
A mãe, sem forças, responde: - Só a do balde, Sofia.
- A da chuva, mãe?
- Sim, filha, só temos a da chuva. Mas um dia você será o que eu não fui.
A mãe, chorando, antes de morrer, sem saber como a filha iria ficar, sem saber o destino da própria descendente, fala: - você será uma boa pessoa, Sofia. Com saúde, com virtudes e luz. Não viverá nesta miséria a que a submeti. E creia em Deus, filha. Ele existe. E o tempo é dele.
A vida, gosto dela. Mas uma parte dela me despedaça. Vidros de carne. É porque nestes signos só existem lágrimas artificiais, prontas para serem chamadas: carpideiras escuras. Escuras de inverdade. Porque o real é uma farsa. E desta farsa, queridos, o planeta se edifica.
Peço às árvores, porém, que permaneçam lúcidas. Que produzam frutos de bela sabedoria, para que os homens permitam a vitalidade. Peço ao real que dê oportunidade às crianças que ainda vêm a este mundo. Que não mate com armas de guerra. Que represente mais que dois pães, de cuja miséria os humanos diariamente se sustentam. Nossos adolescentes precisam estudar, crescer saudáveis. Precisam ter oportunidades de conhecerem, no mínimo, a si mesmos.
Esta rosa, enfim, não é rosa. É espada. O real é uma verdadeira espada.
Máquina trituradora de sonhos. E de pessoas.