Coisas da Bahia

Morando em Minas desde 1993 (o que me torna, no mínimo, “baianeiro”), nestes mais de 19 anos consegui assimilar um tanto da cultura mineira, desde o sotaque até o jeito de ser, passando pela culinária e pelas muitas manifestações artísticas. Só continuo imune ao “uai”, ao “sô” e ao “bobo”. Das minhas origens, guardo ainda uma infinidade de “baianices” (minha esposa Luciana que o diga, pois estamos há quase dez anos juntos e ela ainda se surpreende com alguma palavra ou expressão nova que vez em quando relembro).

Quando se deixa a terra natal para morar em outro estado, em outro país, é muito comum se perder um pouco do sotaque e dos costumes. Nesta mudança também se perdem algumas referências da antiga casa, principalmente as cotidianas. Afinal, ninguém consegue ficar imune às novidades que vão sendo digeridas na nova realidade.

Em se tratando de deixar para trás um estado como a Bahia – tão impregnado de tradições arraigadas – é muito difícil não se pegar lembrando quase que diariamente de suas peculiaridades. Nem sempre é possível dividir as vivências e as percepções deste “universo paralelo” com quem não é baiano.

Há pouco tempo eu quase me passei por louco em plena rua ao me surpreender rindo escancaradamente, lembrando-me de um episódio pitoresco vivido por um amigo em Salvador. Hoje funcionário da Justiça Federal em Belo Horizonte, ele conta que um dia presenciou uma conversa entre vendedores ambulantes que faziam ponto nas imediações do Tribunal de Justiça, onde trabalhava. Tudo girava em torno da invasão de espaço por um vendedor de picolé até então desconhecido. Como cada um se tratava pelo nome do produto que vendia, o resultado ficou mais ou menos assim: “eu já falei com Picolé que quem é novo na área tem que pedir licença pra Cafezinho, Amendoim Torrado e Geladinho, que são os mais velhos daqui. Foi assim que a gente fez, né Quebra-Queixo?”

Para contextualizar essa história, vale ressaltar que geladinho é o mesmo chup-chup de Minas, e quebra-queixo é um doce delicioso feito com coco queimado (uma espécie de “puxa” mais consistente). Faltou dizer que “Caldo-de-Cana” é o autor dessa fala inusitada e certamente estranha em qualquer outra parte do Brasil.

Tem mais: para os que acham que tudo é lento na Bahia, é bom que se diga que lá a intimidade é construída a jato. É absolutamente trivial uma pessoa ser apresentada a outra às 11h30min e, logo em seguida, convidá-la para almoçar em casa (sem avisar aos pais que vai chegar com um estranho, ou melhor, com o novo amigo). E se esse novo amigo também for baiano, ele não só aceitará prontamente o convite como chegará à casa desconhecida com sede e, sem qualquer cerimônia, abrirá a geladeira para apanhar a garrafa d’água, um suco, uma cerveja... Há quem chame alguém assim de “folgado”, mas na terra de Jorge Amado e Dorival Caymmi normalmente isso é visto como atitude calorosa ou como uma predisposição para a intimidade. Claro que nem sempre dá para interpretar por este ângulo. Há quem seja realmente “vagal” (vagabundo no “baianês”).

Certa vez, numa das minhas idas anuais à Bahia, estava passeando (com um visual “cara-de-turista”) no Porto da Barra, em Salvador, quando fui interceptado por um suposto mendigo, aparentemente saudável, vestido apenas com uma bermuda jeans surrada e com jeito de quem não via um banho há dias. Deitado de lado num banco e escorando a cabeça com uma mão, ele acenava para mim com a outra e dizia com todas as vogais arreganhadas: “venha, venha!” Ele queria, nada mais nada menos, que eu fosse até o banco para deixar algum dinheiro. Alguém já viu algo parecido em Minas?