UM DIA DE POESIA NO SERTÃO
José Ribeiro de Oliveira
Era uma tarde de sol tal qual aquelas que inspiraram Catulo da Paixão Cearense a pedir a Deus para chover (de mansinho). Subíamos pelas veredas solitárias e melancólicas de um escaldante sol a pino, sobre as pegadas de Virgulino Ferreira da Silva e o extrato da poesia de Zé Marcolino. O destino sendo traçado simultaneamente. E sem que se imaginasse aonde chegar, colaterais buscas se realizavam pelas mesmas trilhas. Sob o desidratante calor da pressão solar sobre a Serra Talhada e sua caatinga, na vazia, porém instigante indagação dos tempos idos e seus acontecimentos, quase santificados pela verve dos poetas contemporâneos, colidem-se, inesperadamente e surpreendentemente, passado e presente, como se profeticamente fosse previsto. E no mesmo rumo, pelos mesmos passos, perguntas e respostas, lúdicas sensações, ali na tala, trazendo concretas respostas, apanhadas na fonte, autenticas, poesia em movimento, como se com cheiro e cor, reais e bem presentes. De Virgulino nem tanto, apenas pensamentos, lampejos nostálgicos por alcançar o que os seus olhos viram, trilhar por sobre suas pegadas e especular em pleno palco dos acontecimentos. Mas de Zé Marcolino, até o cheiro, rebuscado pela consangüinidade ali presente, a essência da poesia e musicalidade aflorando por entre as palavras, as veredas, os raios de sol e as emoções. Zé Macolino em feição, poesia e prosa por via de Valter Marcolino (filho), em reprise pelo paiol da inspiração paterna para a construção das mais lindas poesias que retrataram a vida e sua beleza no cenário do Sertão e imortalizaram o nome e a alma de quem as produziu. Ali ao lado, a própria história, com uma parte dela em andamento, gerando capítulos pela herança da estirpe mais autentica, a retratar a cultura, o sentimento, o sofrimento, as angustias, os costumes, a grandeza e a fortaleza de uma gente que faz poesia da dor, humor das desventuras e arte daquilo que os outros vêem como torto. E para alegrar, junta tudo e despeja na via mais sublime da perpetuação e comunicação: a música. Senti-me por entre a pena e o papel, embalado pelos acordes no momento da criação de Sala de Reboco; revivi, por certo, a melancolia de Serrote Agudo, retratando com riqueza de detalhes um cenário de vidas passadas, perpetuado na poesia do grande poeta Marcolino; lembrei-me do causo bem humorado da Dança de Nicodemo; emocionei-me com o sentimento dos versos ricos e fortes de A Estrada; voltei-me para o momento de desprendimento e reflexão que só um poeta do calibre de Zé Marcolino extrairia de um quase nada, quando fez poesia da Lata de Lixo (caixa de guardar desprezo). Aprendi o que somente a canção de Zé Marcolino me ensinaria, na canção Tire o Canário, onde retrata o recato da menina, cruzando os braços ao peito no momento da dança, para limitar a intimidade do parceiro (coisas que se eterniza pela obra do poeta). E nem mesmo um livro poderia, com a precisão e emoção que só uma canção possui, retratar um episódio como Machado Cortador, Pedra de Amolar, a lenda do Lobisomem e tantas outras canções que precisaria de muito espaço para elencá-las. É... Vendo essa grandeza de criação me pergunto: Luiz Gonzaga Imortalizou Zé Marcolino ou Zé Marcolino imortalizou Luiz Gonzaga? Deixemos isso pra lá, com a simples conclusão: um nasceu para completar o outro e ambos encantam o mundo. E eu, extasiado, registro estes fatos por mero dever de deixar a minha gratidão ao grande poeta Zé Marcolino, pelo enorme prazer que me promove em ouvir suas canções e, através delas, reviver o meu querido Sertão. Também não poderia deixar de fazê-lo pela forma inusitada como me encontrei com o filho do grande poeta e igualmente talentoso músico e líder da banda Currupio, Valter Marcolino, que gentilmente me presenteou com muitas das belas obras do meu poeta Zé Marcolino. Como disse, se aproximava da metade do dia 31 de dezembro quando, com um amigo e minha namorada, em passeio por Serra Talhada, Sertão pernambucano, decidimos subir a serra de pedras no cenário da caatinga por onde, em tempos passados, sob o domínio do cangaço a história se fazia aterrorizante. Depois de algumas curvas, na estrada deserta e com características de pouco trilhada, guardando em ruínas casebres esquecidos de velhas histórias, percebi a presença de um veículo que nos seguia. Continuamos por algum tempo e o tal veículo, mais possante que o nosso, sequer diminuía a distancia. Ficamos aflitos com aquela situação. Ora, vínhamos conversando sobre Lampião e suas peripécias. O clima que passava por nossas cabeças era de cangaço, violência. O quadro que se desenhava com a presença daquele carro nos seguindo, nos trouxe maus presságios. Mesmo assim, não podíamos desistir e nem havia opção para retornarmos, a não ser no final da estrada. Algumas bifurcações, de difícil tráfego, apareceram na seqüência, mas o veículo estranho escolheu a mesma opção que nós. Começamos a ficar apreensivos. Pensamos em ligar para a polícia. Inútil, os telefones não davam sinal. Apelamos para a sorte e jogamos tudo no colo de Deus. Depois de algumas voltas e a quase certeza de que estávamos em maus lençóis, chegamos a um largo no pé da torre de transmissão televisiva, no topo da serra, e como o local era deserto e não tinha saída, resolvemos nos entregar à sorte ali mesmo, até porque, tinha uma bela vista para a cidade, uma linda paisagem e, se algo nos acontecesse, pelo menos cumpriríamos a nossa missão (apreciar a paisagem do topo da serra). Paramos o carro no final da estrada, onde havia uma cerca e não permitia passagem, ou seja, estávamos encurralados. Não havia mais o que fazer, era só esperar o veículo sinistro que certamente nos alcançaria. Descemos e nos colocamos como humildes vítimas. Logo a seguir apontou o tal veículo, lentamente subindo a serra. Parou um pouco distante, a cerca de uns 20 metros de nós. Seus integrantes aguardaram alguns segundos para deixarem o carro. Que angustia! Era o ultimo dia do ano, festas à vista e nós à beira de uma situação imprevisível! Viemos de tão longe e tantos lugares existiam para visitamos naquela hora, por que escolhemos ir para tão sinistro local? É... Agora não tem mais jeito. Alea jacta est. O carona desceu do veículo. Era ele um sujeito forte, de bermuda e camiseta, não trazia nada nas mãos. A seguir desceu o motorista, um sujeito igualmente forte, com protuberância abdominal, igualmente vestido e também não portava nada nas mãos. O motorista nos cumprimentou meio desconfiado. E era assim que também estávamos. O meu amigo Romildo, morador da cidade há muitos anos, respondeu aos cumprimentos como se conhecesse o outro motorista. Eles se aproximaram de nós e nos cumprimentamos. Algumas palavras foram soltas de ambas as partes e uma conversa começou a ter espaço entre a gente. Respiramos e o sangue passou a circular com maior fluidez em nós. Andamos alguns metros e apareceu o vigia da torre alertando que teríamos deixado a porta do carro aberta. Diante de tudo aquilo e da reconstituição da ordem, nem demos atenção. Conversa vai, conversa vem, começamos a trilhar as veredas deixadas pela erosão das raras chuvas e as pegadas de Lampião. Na adoração das paisagens, começamos a entrelaçar o passado e entremeá-la com poesias. Neste momento, um dos antes suspeitos, nos revelou que por todo o tempo que nos seguia naquela estrada, estavam com medo de nós. O outro, identificando-se como Assis, capitão da Polícia Militar, disse que se armara com uma faca em prevenção contra nós (esta faca, posteriormente nos apresentou). Valter Marcolino, o outro suspeito, já expressando seus dotes poéticos e proseando em ar descontraído, revelou-se filho do grande poeta Zé Marcolino e passou a lembrar de algumas das suas canções eternizadas por Luiz Gonzaga, as minhas favoritas. E eu fã número um, melhor ouvinte e apreciador desses monstros da poesia sertaneja, fiquei logo íntimo. E a caminhada, sob um sol acima de 40 graus, ficou muito mais agradável. Exploramos quase toda a caatinga na Serra Talhada. Já cansados, resolvemos retornar, mas como a conversa estava interessante e o encontro já marcava as nossas vidas, mais uma vez a sorte nos presenteia e, na descida da serra, numa casinha solitária e cercada por um terreiro de árvores sombrias, resolvemos parar para esmolar um copo d’água. O capitão Assis agradeceu a gentileza do Sr. Rufino, o dono da casa, mas perguntou se ele não tinha guardado alguma água que não se serve a passarinho. Coincidentemente o Sr. Rufino, com um piado de voz que mal se escutava: um Cid Moreira depois de uma malária arretada – brincou Assis, respondeu que tinha e logo foi buscar. Sentindo que as coisas poderiam prosperar por mais um pouco, pedimos que arrumasse uns banquinhos para sentar. Ao lado da casa, divisamos um pé de siriguela cheio da própria e fazendo sombra à direita da casinha, onde fizemos ponto. E estacionando o carro na mesma sombra, eis que o capitão Assis, demonstrando um gosto musical semelhante ao meu e de agrado de todos, nos trouxe aos ouvidos as delícias de Zé Marcolino, enquanto eu conversava poeticamente com Valter Marcolino. A minha emoção foi tanto que tive que dividir com meu amigo Delvan em Imperatriz, igualmente fã daquelas delicias musicais, para quem compartilhei por telefone. Conversa vai e vem, quando desfilou na nossa frente, por baixo do pé de siriguela, um belo exemplar de galinha de terreiro. Dirigi-me ao Sr. Rufino: bote preço na penosa e mande fazer para nós!? Ele não titubeou, chamou a mulher e determinou o destino da semovente. Não demorou muito e estávamos saboreando aquela preciosidade, ao som de Luiz Gonzaga, poetizando Zé Marcolino, nos abeberando dessas delícias sob um pé de siriguela, sentados em tamboretes ao redor de uma tábua que fazia papel de mesa, juntando entre nós mesmos o conforto da rusticidade do Sertão, num dos seus cenários mais ricos e apropriados para a alegria e prazer daquele momento, que só foi interrompido pelos telefonemas de casa, indagando sobre o atraso para o almoço. E como Zé Marcolino não estava fisicamente presente para, desses fatos, compor mais uma bela canção, resolvi registrar esses momentos para a nossa permanente lembrança e homenagem ao grande poeta, seus descendentes e admiradores.