O guerreiro lapense - Crônicas lapense

Projeto: Crônicas lapense

Autor: Irineu Magalhães

O guerreiro lapense

Na Europa a guerra pipocava, a Segunda Guerra mundial estava no auge, era 1943, todos viviam apreensivos, preocupados com a guerra, agravado pela falta de informações em tempo real, as notícias da Europa chegavam aqui na Lapa com meses de atraso ainda assim eram distorcidas, pelo boca a boca do povo.

Duquinha de seu Salú estava rouco de tanto gritar: “Olha a água, olha a água fresquinha do pote, olha a água”.

Os fregueses não apareciam, também estava ali de teimoso, a romaria de setembro já tinha acabado, só os mais abastados do sul e sudeste apareciam vez em quando após o período festivo; alguns turistas e fotógrafos permaneciam na cidade. Duquinha já estava cansado era próximo do meio dia o sol venenoso de setembro queimava tudo e ardia na pele, Duquinha mirou numa arvore na esplanada, e como numa miragem viu uma fresca sombra ventosa e com três largos passos correu para o seu oásis, ficou lá vigiando o pote d’água fresca, que estava embaixo de uma velha lona amarrada pelas pontas, nos quatro cantos em estacas abaixo da escada do pátio da gruta.

Primeiro passou uns homens falando estranhamente, Duquinha nenhuma palavra compreendia, as únicas palavras que se ouvia distintamente eram, “No, good, Yes, no, no”, gente branquela de cabelos amarelos como pouco se viam por aqui. Duquinha se punha a perguntar: “Estariam falando do velho Nonô, é, deve ser parente de seu Nonô? Deixa pra lá, gente estranha” , logo depois, junto dele apareceu outros com o sotaque diferente, paulistas, mas esses ele entendia, traziam uma mala grande, estacionou-se bem próximo dele; o garoto ficou curioso, de repente os rapazes abriu a mala e retiraram uma parafernália que não acabava mais, era um lambe-lambe, começaram a montar a máquina; Duquinha já tinha visto aquele troço algumas vezes, porém assim de perto, montando era a primeira vez, o que sabia sobre aquilo era que as pessoas ficavam paradas à frente da tal máquina e normalmente sorriam e faziam poses, estranho mesmo era aquela fumaça seguido de um clarão. Como a tal máquina não o ameaçava, resolveu ficar ali observando, um olho nos potes e outro no lambe-lambe, mas sempre atento, “qualquer coisa eu corro”.

- Essa guerra vai nos matar a todos, pode acreditar já se fala em espionagem. Em São Paulo mesmo foi descoberto vários espiões alemães. Falava Alberto o fotógrafo.

- Verdade, chego a sentir arrepios, penso que de repente o Brasil vai ter que enviar soldados para combater na Europa; eu fui dispensado do serviço militar, mas quem sabe se o negócio apertar por lá não nos chamam? Comentou Rodolfo com ar preocupado.

Duquinha a poucos metros dali arregalava os olhos e o peito pulsava mais forte a cada palavra dos homens à sua frente.

- Eu não duvido de nada amigo, dizem que a maioria dos soldados que vão para lá acabam morrendo em combate.

O garoto lembrou-se da última missa em que Monsenhor Turíbio pediu para o povo rezar pelos soldados que combatiam no front da segunda guerra mundial e pela suas famílias em todo mundo. Aquilo deixava Duquinha arrepiado; e para completar: “a guerra não é coisa de Deus”, o seu pai, seu Salú vivia murmurando pelos cantos de quando em quando, ao ouvir alguma noticia tardia do sudeste sobre o que ocorria na Europa.

- Verdade, eu mesmo tenho um primo italiano que combateu, e logo foi estraçalhado por uma granada, morreu aos poucos num hospital de campanha. Falou Alberto.

- Acho que o conheci, não era o Giovanni? Morava em barra funda?

- Sim, eles têm dupla cidadania, são italianos de nascimento e vive em São Paulo no bairro da Lapa, e por insistência do meu tio alistou-se na Itália. Coitados!

Ao ouvir o nome lapa, Duquinha arregalou os olhos e prestou mais atenção à conversa dos rapazes.

- Seu tio tem mais dois filhos não é?

- Sim, são italianos também, e como o Giovanni foram obrigado a alistar, eles estão morando agora na Lapa, foram convocados para a guerra e no mês que vem já vão partir para Europa.

- Ué, eles estão morando na Lapa? Não era no bairro Casa Verde?

- Não! Há tempos, eles, o meu tio, a minha tia, mudou para a Lapa, coitado de Paolo e Pietro, meus primos, agora da Lapa para morrer na guerra... Rodolfo! Vamos buscar o rapaz...

- É meu amigo, a guerra chegou e vai nos matar a todos, e...

- Ô meu bom Jesus, a guerra chegou aqui! A guerra chegou! Duquinha soltou um grito apavorante ao passo que saiu espevitado correndo esplanada abaixo; catou os copos, a concha de alumínio e se mandou espalhando a má notícia.

- O que deu nele?

- Vai saber?

- Deixa pra lá, como dizia... Vamos buscar o rapaz para nos guiar na subida do morro.

Duquinha atravessou a Praça da Bandeira em pulos, berrando feito um doido: “A guerra chegou, a guerra chegou à Lapa”, seu Domingos que estava à porta da sua venda, indaga o moleque.

- Que foi Duquinha, que guerra?

- Sim seu Domingos a guerra que o Monsenhor Turíbio vive falando na missa, que está acontecendo na Orópa, chegou aqui. Falou o menino pálido e arfante.

- Quem te falou isso moleque?

- Foi dois homens que estão na esplanada; eles ainda falaram que vieram buscar Paulo Preto para a guerra.

- Paulo Preto filho de seu Jonas? Convocado para a guerra? Por quê?

- Sim. Responde Duquinha ao passo que saiu correndo e gritando: “Paulo Preto foi convocado para a guerra na Orópa, Paulo Preto foi convocado para a guerra“.

Seu Domingos entra à casa apavorado e abraça os filhos consternando-se:

- Óh Meu Deus, não deixe que meus filhos sejam chamados à guerra; mulher! O filho de Seu Jonas, seu padrinho, foi chamado para Orópa para guerrear.

- Vixe meu Deus, Paulo Preto, Santa virgem, tão jovem, vai lá Domingos e tenta consolar meu padrinho.

Seu Domingos, colocou o paletó, fechou a venda, foi na esplanada constatou que realmente havia dois rapazes de fora; rumou para a casa do amigo. Seu Jonas morava na esquina da atual Rua da avenida esquina com a Avenida Manoel Novaes. Chegando já viu o tumulto, os vizinhos, parentes, amigos e curiosos se apinhavam à porta da casa de seu Jonas.

- Meu filho ninguém leva, meu filho ninguém leva, ele só sai daqui por cima do meu cadáver. Berrava seu Jonas abraçando Paulo o filho único.

- Ô meu amigo, soube da notícia há pouco; os vi na esplanada, fiquei sabendo que vão levar Paulo para a guerra, certamente já estão procurando a casa do senhor. Acrescentou seu Domingos.

-Também os vi há pouco na esplanada tirando retratos, e segundo dizem, já estão vindo para cá. Completou o cabo Borginho.

- Fui eu quem viu primeiro, fui eu... A segunda guerra chegou na Lapa... Ô meu Deus...

- Está bem Duquinha, você viu primeiro. Retruca um curioso impaciente.

- Ninguém leva Paulo Preto daqui, ninguém leva Paulo Preto daqui. Bradava a multidão na casa de seu Jonas.

O povo já se armara com facão, paus, espingarda de matar preás e pedras, e se agitava, bradava: “Eles só são dois, não vão ter coragem de enfrentar a gente, estamos com você Paulo”.

- Meu filho ninguém leva!

- Seu Jonas, seu Jonas, manda ele para Sitio do Mato ou para Gameleira da Lapa, ele se esconde por um bom tempo lá. Sugeriu seu Domingos.

- Não sei Domingos, mas o quanto mais rápido acharmos uma solução melhor é. Eles já devem estar chegando.

- Seu Jonas, dizem que quando eles convocam para a guerra, se a pessoa não for de boa vontade vai à força, eles vem buscar de qualquer jeito, pense homem, é seu filho, seria uma solução levar Paulo Preto para Gameleira.

Paulo Preto num canto chorando inconsolável, a mãe dava-lhes o ombro:

- Meu filho, seja como Deus quiser, se você tiver que ir mesmo servir a nossa pátria é melhor que vá, senão fuja.

- Mãe! Vou seguir o conselho de seu Domingos; mesmo por que não temos tempo para arrumar outra solução, eles já devem estar chegando.

- Vá meu filho arrume suas coisas, vamos! Você vai de canoa agora mesmo para Gameleira, ninguém vai te achar lá. Completou Seu Jonas.

Paulo estava tão assustado que até mudara de cor, rapidamente pegaram as coisas e se mandou para o rio, seguido por uma multidão. O rapaz não queria saber de conversa pegou a canoa, jogou suas tralhas dentro e remou o mais forte que podia; se mandou para Gameleira. Ramm! Guerra na Orópa, eu? Eles nunca vão me achar lá. Passou um bom tempo entocado no mato; Paulo Preto só voltou para a Lapa um ano depois que a guerra acabou; ao chegar foi tratado como herói de guerra.

Autor Irineu Magalhães.

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