A caridade e O Bondade - Crônicas Lapense
Projeto: Crônicas Lapense
Autor: Irineu Magalhães
A caridade e O Bondade
Dona Amélia havia falado, recomendado mil vezes para Neco, ele teria que acordar cedo para arrumar dinheiro para pagar a conta, a Coelba iria cortar luz naquele dia, era pra Neco acordar bem cedo, era...
- Acordar homem, vá arranjar renda; se eles cortarem a minha luz e tiver que acender candeeiro você dorme na rua, acorda traste...
- Me deixa mulher, isso são horas de me acordar?
- Homem imprestável, você sabe que horas são?
- Me deixa, sei que é muito cedo, vá procurar o que fazer.
- São quase nove horas, o sol já está alto...
- Vá para o capeta, me deixa dormir!
Neco virou para o lado e ferrou no sono, só foi acordar próximo do meio-dia, saiu para o quintal, deu uma boa espreguiçada, limpou as remelas, e ficou sentado num cepo no terreiro.
“E agora? Essa mulher vai me azucrinar se a Coelba cortar essa luz, como eu vou pagar? Rereeeê, ninguém mais tem coragem de me emprestar dinheiro, eita povo miserável; é Neco dessa vez você está lascado... humm!”
Neco espichou os olhos para o cachorro que tava dormindo num canto do quintal embaixo da jabuticabeira, e ficou matutando.
“Seria uma boa idéia, mas eu gosto tanto dessa peste... não sei... se ao menos arrumasse um comprador... será quanto vale? Mas dá uma pena, mas se... humm, pode dar certo, vou tentar”
- Mélia, qual o valor da conta de luz? Gritou Neco.
- Resolveu pagar agora? Não paga não para ver o que te acontece...
- Fala logo mulher...
- 40,00 cruzeiros.
- Certo, vou dar um jeito.
Voltou Neco metido nos seus pensamentos.
“Acho que ele vale esse valor, vai dar certo, mas quem iria comprá-lo... humm, já sei, seu Idelfonso do três I, acho que ele compraria... vou tentar.”
- Bondade! Cou cou, Bondade, vem, vamos passear!
“Uma pena vendê-lo, gosto tanto dessa praga, mas como dizem por ai, a necessidade faz o ladrão, é o meu caso, agora tenho que arrumar uma corda bem grossa, mas muito grossa mesmo”.
Levanta Bondade todo lutrido abanando o rabo, Neco enfia-lhe a corda no pescoço do cachorro e arrasta-o para rua.
- Vai pra onde com esse cachorro Neco?
- Vou arranjar o dinheiro da conta de luz.
- E pra que o cachorro?
- Me deixa mulher, você não quer o dinheiro da conta de luz? Então!
Seu Idelfonso estava cochilando no caixa do mercadinho, que ficava localizado no bairro de Amaralina na Rua Sílvio Santos. Já passava das 13:00 horas, foi acordado pelos berros de Neco, raiando com o cachorro em frente ao mercadinho três I.
- Sossega Bondade, sossega, não, pára Bondade, eita cachorro brabo!
Neco engarguelou o cachorro e o bicho ficou esperneando, com um latido surdo, rouco.
- O senhor vai enforcar o cachorro desse jeito! Gritou seu Idelfonso.
- Esse cachorro é muito brabo, o bicho é feroz, se não for assim, ele avança em todo mundo, o bicho parece um leão.
Seu Neco arrastava o cachorro, agarrava-o, gritando: “Pará, pára, não, passa”; o cachorro lutava para respirar.
- Nunca vi um cachorro tão tinhoso como esse, o bicho é uma fera, lá em casa as portas vivem abertas, e olha que nem muro tem, duvido qual ladrão tenha coragem de entrar lá; não uso corrente para andar com ele, já quebrou umas três, só corda mesmo para segurar esse leão.
- É! O bicho parece mesmo valente...
- Ô se é! Esses dias ele correu atrás de um cara que vivia rodando minha casa, o bicho encarcou o pé atrás do meliante; só parou quando o cara estava no chão, tive que chamar os vizinhos para ajudar tirar o bandido da boca dele senão ia matar o homem, mesmo assim deu muito trabalho, ô cachorro feroz, de bom mesmo só tem o nome: “Bondade”.
Seu Idelfonso parecia impressionado com o cachorro, Neco alisava a cabeça do animal, repetindo sempre: “Calma, calma, está tudo bem, está tudo bem.”
- Estou vendendo seu Idelfonso, tenho que pagar a conta de luz lá de casa, estou com coração apertado, pois o bicho é valente demais, e gosto dele, quer me comprar?
- Pede quanto nele?
- O valor da conta de luz, 100,00 cruzeiros.
- Mas é muito dinheiro por um cachorro...
- Não é seu Idelfonso, vale a pena, ainda mais com um quintal grande desses que o senhor tem, precisa de um bom cão para proteger.
Seu Idelfonso nem pestanejou mediante ao argumento de seu Neco.
- O cachorro é meu! Toma o seu dinheiro.
Neco entregou o cachorro recebeu o dinheiro e foi saindo...
- Mas uma coisa seu Idelfonso, me arruma uns pães velho e um pouco de açúcar e farinha...
Fonso montou uma cesta básica e deu para Neco, que saiu recomendando:
- Ele está meio lerdo e sonolento por que tem dois dias que não dorme nem come direito, nós estávamos caçando tatu, por isso o bichinho está assim baqueado, dê comida e deixe ele sossegado num canto que logo logo recupera as forças. Outra coisa seu Fonso mantenha a fera amarrada numa corrente bem grossa, é perigoso ele atacar alguém da sua família.
- Vou mandar alguém lá agora comprar uma corrente bem grossa...
- Outra coisa: Esse cachorro é muito traiçoeiro, quem olha para não dá nada por ele, a fera finge que está sossegada para na hora certa dá o bote, muito cuidado, quem vê cara não vê coração. Saiu Neco recomendando.
Seu Idelfonso mandou logo um empregado comprar uma corrente bem grossa na venda de João Galego; a corrente veio caprichada, da grossura de um polegar, amarrou a fera no abacateiro no quintal, reuniu os filhos e recomendou: “Está vendo aquela fera ali amarrada no abacateiro? Vocês não podem nem passar perto dele, o bicho é brabo demais”. Vanvam nem quis saber de quintal mais, passava léguas do abacateiro, Netinho toda vez que ia para o quintal arregalava os olhos que faltava pular fora da cara de tanto medo.
Passa uma semana, nada do cachorro se animar, só vivia deitado, os meninos já tomaram coragem e ousava passar perto da fera, mas seu Idelfonso sempre recomendava: “Muito cuidado, ele é traiçoeiro se finge de bonzinho, mas se chegar perto dele o golpe é certo”.
A velha Nazinha mãe adotiva de seu Idelfonso vivia reclamando pelos cantos: “Quá, isso aí? Podem trocar o nome dele de Bondade para Ruindade, não presta para nada, solta isso Fonso, você perdeu o seu dinheiro, é um verdadeiro come-e-dorme”, dizia Dona Nazinha apontando para o cachorro.
Passa um mês e nada de o cachorro se animar, só vivia deitado, ninguém acreditava mais que o bicho fosse feroz como falavam. Um dia a tarde seu Idelfonso resolveu fazer um teste, chamou Bilunga um Empregado da casa para soltar o cachorro e ver qual a reação do bicho.
A notícia correu a vizinhança, os meninos encheram o quintal para ver a fera solta, todos encima de um caminhão estacionado no quintal, Bilunga na ponta dos pés para não acordar o bicho e dá tempo de correr para o caminhão, destranca o cadeado, e sai numa carreira e se junta a meninada. Bondade só olhou de lado abriu um olho, bocejou, esticou o espinhaço, percebendo a liberdade deu uns dois passos, e voltou a dormir. A molecada só faltou tirar o couro dos filhos de seu Idelfonso, berravam, urravam, riam dá “fera” que o pai dos garotos havia comprado. De repente um fato inusitado aconteceu; o gato das meninas filha de seu Idelfonso estava tão acostumado a passar perto de Bondade que nem dava atenção ao inimigo, mas dessa vez foi diferente, ao ver o inimigo felino Bondade levantou-se lentamente, todos calaram, o gato vendo aquilo arrepiou os pelos, esticou o espinhaço ficando na ponta das unhas e deu um pulo seguido de miado horrendo, Bondade saiu numa carreira, latindo de medo, que só se viu a poeira levantar atrás; atravessou o portão e se mandou. Os meninos quase morrem de tanto rir, Dona Nazinha vendo o movimento fala com seu Idelfonso: “Não te falei! Você gosta mesmo de jogar dinheiro fora não é?” Mais nunca se viu o cachorro Bondade.
Autor: Irineu Magalhães