O Sapato novo – Crônicas Lapense
Projeto: Crônicas lapense
Autor: Irineu Magalhães
O Sapato novo – Crônicas Lapense
Zuza só era conhecido como mestre Zuza, doutor nas artes de fazer sapatos, também consertava, armengava, sempre dava um jeito a la gust del freguê, se era para trocar o solado cara feia ele não fazia, mandava voltar no outro dia, enrolava mas saía; quem conhecia a sapataria sabia como era gostoso o cheiro, aquele cheiro característico, cheiro de couro cru.
Dona Armandinha tinha anotado todos os itens para o primeiro dia de novena, não podia faltar qualquer que seja, viria até um padre de fora; “sabe como é... Mulher decente tem que estar com tudo arrumado”, perdida em outros afazeres deixou para consertar os sapatos em cima da hora, correu no mestre Zuza bem de manhazinha - o coitado ainda estava dormindo...
- Zuza seu imprestável abre esse muquifo logo. Passarinho que não deve nada a ninguém já acordou. Acorda, acorda. Espancava a velhinha a porta da sapataria com toda força
- Abra imprestável, abra.
- Já vai, quem é? Já vai. Ué dona Armandinha queria quebrar a porta?
- Eu vou quebrar é você se não arrumar o meu sapato até as cinco, cinco não, quatro, como você é enrolado... Vou ficar no pé. Disse a velinha com a bengala ameaçando o mestre.
- Sabe como é dona Armandinha já tem outros fregueses na frente, seu Filó, seu Martinho, dona Mocinha e dona Filomena, todo mundo estar apressado por causa da novena e o padre novo...
- Eu pago nem que seja mais caro, mas quero o meu sapato arrumado.
Esse foi ultimato de dona Armandinha que saiu praguejando. O mestre coçou a barba coçou a cabeça e assentou desanimado, mudo, na minúscula cadeira de oficial sapateiro lapense.
- Isso não vai prestar...
Olhou para o único relógio que conhecia na parede da farmácia São José e viu que o sol nem tinha apontado na cumeeira ainda.
- Dá tempo de tirar um cochilo.
Fechou a porta e agarrou no sono, sentado recostando à cabeça em sua mesa de trabalho, em meio à chuliadeiras, pregos, cola e tiras de couro; ele estava cansado tinha recebido a visita da viúva Dulce na noite anterior, coisa que demorou e só largou o mestre de madrugada, isso porque tinha medo das más línguas.
- Zuza! Mestre Zuza, o senhor estar aí?
Dessa fez era o entregador de água em seu jumento adestrado.
- Povo ruim do capeta, não se pode dormir em paz. Já vai, Já vai, quem é?
- O jegueiro, o senhor vai querer água hoje?
- Há essa hora? Abriu a porta bufando de raiva o mestre do couro.
Nem deu tempo de dar um rapa no moleque entregador. Olhou para a parede de Orlandinho.
- Minha santa mãe de Deus! Já é meio dia, santa virgem, ó virgem as encomendas. A encomenda de dona Armandinha
- O senhor vai querer quantas cangalhas hoje? Meu pai mandou cobrar as entregas da semana passada
- Deixa duas, e passa à tarde.
Rapidamente se situo Zuza à sua mesa. Não dava tempo de arrumar todas as encomendas, o jeito era enrolar alguns e não entregar; mentalmente selecionou pelo perfil dos fregueses: Os mais nervosos, dona Armandinha, “essa por si só tinha um perfil próprio, ô gênio do cão” pensou Zuza. Os mais abastados, por último os mais calmos e os mais pobres, mas as suas contas não batiam; tinha quem era pobre e nervoso e tinha rico calmo; o que fazer?
- Alguém vai para novena de alpercatas hoje. Disse Zuza dando uma risadinha sarcástica. O de dona Armandinha esse tenho que consertar primeiro.
Lá pelas quatorze chega dona Armandinha.
- Já está pronto embusteiro?
- Calma dona Armandinha, daqui a pouco fica pronto.
- É bom mesmo viu, vou à casa da comadre e daqui a pouco volto.
Mal dona Armandinha sai, a difusora anuncia: “É com pesar que comunicamos o falecimento de Amélia, na intimidade conhecida como dona Mocinha”.
“Ó Deus bondoso que ampare a alma de dona Mocinha. Meu Deus o que fazer? Essa mulher vai me matar se não aprontar a encomenda dela... o que fazer? Humm, espera um pouco... a difusora... já sei... dona Mocinha... Você é um gênio Zuza”. Pensou o sapateiro maquiavelicamente olhando para a única caixa de sapato novo na prateleira.
Lá pelas quinze chega dona Armandinha...
- Está pronto, cadê?
- Dona Armandinha o seu sapato não teve jeito, só serve pro monturo, mas...
- Minha santa mãe, e agora... Seu imprestável...
- Mas dona...
- Sem mais nem menos dê um jeito...
- Isso que ia dizer... Já tenho a solução...
- Qual é? Desembucha.
- Não sei se a senhora sabe, mas estou vendendo sapatos de fábrica da capital agora; chegou para mim esse lindo par, veio dos estrangeiros e serve perfeitamente na senhora, vamos experimentar?
- Não sabia que vendia novos... Mas esse sapato não é de Mocinha? Que Deus a tenha; ela me mostrou um igualzinho esses dias atrás, disse que ficou apertado e levou pro sapateiro enlanguescer.
- Não, não, de forma alguma, o dela é igualzinho a esse sim, pois fui eu quem vendeu. Que Deus a tenha... Esse é outro.
- Zuza, Zuza, não minta pra mim...
- Virgem santa, nunca iria mentir para a senhora...
- Ramm, não sei não, realmente é muito bonito... E quanto custa?
- Vou lhe fazer um ótimo preço... Faço pra senhora por 300.000 contos réis, está bom?
- De jeito algum, sou viúva aposentada, não tenho essa dinheirama toda vale mais que minha aposentadoria.
- Mas dona Armandinha... A novena... O padre novo... Todo mundo vai notar o seu sapato novo... A senhora vai virar o zunzum da novena.
- Dou 200 contos, pronto acabou...
- É da senhora... Quando vai me pagar...
- No dia trinta deste mês... À tarde...
- Mas dona Armandinha no dia trinta... Hoje são sete ainda...
- É pegar ou largar...
- Ta bom, dia trinta então.
Dia quinze, como todo dia Zuza metido nos seus pensamentos: “200 contos... 200 contos, dia trinta... Zuza você é um homem de sorte... 200 contos...”
Dia vinte e três: “200 contos... dia trinta à tarde... Que Deus a tenha dona Mocinha... Deus te abençoe dona Mocinha... 200 contos... Rua das cobras... A noite vai ser curta”.
Dia trinta: “É hoje à tarde... 200 contos... Zuza se prepare, vou comprar um terno na venda do seu Filó... um terno novinho...um chapéu de massa... Zuza você vai ficar bonito num terno novo... Zuza... à noite na rua das cobras... Eta Zuza só vai dá você”
Lá pelo meio dia a difusora anuncia: “É com imenso pesar que anunciamos o triste falecimento de Armanda Magalhães, na intimidade dona Armandinha...”
Zuza que estava martelando uns pregos na bigorna ouvia a triste notícia, coisa que lhe tirou a atenção acertando o martelo no dedo indicador... “Minha virgem, meus réis, meus 200 contos... ó virgem... meu dinheiro”
À noite no velório dona Armandinha estava linda, toda vestida de branco, uma coroa de flores e um belo par de sapatos de couro novinhos. Zuza nem quis olhar para a defunta. “Adeus 200 contos de réis”.
Autor Irineu Magalhães