MARÉ MORTA

Era manhã de domingo e eu praticava caça – sub no cais da Marinha no Comércio como já fiz centenas de vezes. O tempo estava nublado e não havia barcos nem outros mergulhadores na água, apenas eu, fominha, estava lá, descumprindo uma regra básica do mergulho em apnéia que é justamente não mergulhar sozinho. Quem já fez caça sub sabe que é tão fascinante e prazeroso quanto perigoso e cansativo.

A lua estava num quarto crescente perfeito, o que causa um fenômeno chamado “maré-morta” no qual a diferença entre a maré alta e a baixa é quase nula, proporcionando pouca correnteza e água clara, pois os sedimentos tendem a ir para o fundo. É o paraíso dos mergulhadores...

Os militares não permitem o acesso ao quebra-mar, por isso apenas o utilizamos para vestir o traje, pôr a tralha e guardar dentro do farol, roupa, água, celular etc.

Caí na água 7:30h e lá pelas 9:00h, sempre de olho na movimentação sobre o quebra-mar, notei uma família caminhando em direção ao farol, era um grupo de cerca de oito pessoas: adultos, crianças e uma senhora idosa. Notando que os homens tinham cabelos compridos, deduzi que não eram militares à paisana. Certamente seria uma família de turistas com autorização especial pra um passeio dominical no farol.

Pensando assim, me acalmei e continuei minhas imersões. Porém, algo em meu inconsciente não me deixava parar de prestar atenção ao grupo, algo não batia... A família não parecia feliz nem se vestia como se veste quem passeia numa manhã de domingo.

Em dado momento percebi que um dos homens segurava um saco contendo uma substância esbranquiçada. Aproximando-se, com o resto do grupo, da borda do quebra-mar, jogava o conteúdo na água. Havia uma leve correnteza e eu me encontrava à jusante do ponto onde o grupo estava.

Em princípio pensei que a família finalmente decidira fazer algo lúdico e jogava alimento pros chicharros e petitingas, o que seria ótimo pra mim, pois estes são comida dos peixes que caço. Um homem se separou do grupo e veio pra perto do farol, e da minha sacola, percebi que ele chorava compulsiva e copiosamente...

Só aí caiu a ficha. O que eu pensava ser um passeio dominical em família era na verdade uma cerimônia fúnebre e a “comida de peixe” que fora jogada na água e que vinha em minha direção eram na verdade as cinzas de algum defunto!

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Não tive muito contato com os homens do mar e suas superstições. Consta que meu avô Jibóia era habilíssimo em casar o tipo de peixe comprado na feira com as histórias mais mirabolantes sobre a labuta que ele teve pra tirar o bicho da água. A batalha às vezes durava o fim de semana todo e depois era minuciosamente narrada pra minha engambelada avó Maria.

Entretanto, algo muito forte me sugeriu que ficar submergindo a 12m de profundidade em meio às cinzas de um cadáver não era, de modo algum, um bom presságio.

Tomado por um pavor atávico, nadei desesperadamente para longe das cinzas e a velocidade que desenvolvi com certeza, se medida, deixaria Michael Phelps e Cesar Cielo no chinelo...

Porra, a Bahia tem o maior litoral do país. E qual foi o local escolhido pra desovar o defunto pulverizado? A cabeça de Nanai da Bahia! Aí é de lascar...

Mais tarde, sentado no quebra-mar, enquanto eu limpava os peixes, pensando no ridículo da cena, minha mente racional tentava me convencer a cair na água novamente: “Ô bicho frouxo, você não estudou química não foi? Aquilo é só carbono! Vai perder a melhor maré morta do mês?”.

Ao que minha mente irracional respondeu: “Vá se lenhar você e a maré morta. Quem vai lá é a porra!”

De repente, a expressão “maré morta” tinha outro significado pra mim. Fiquei limpando peixe até meio dia. Esperando o barco. Com medo do mar pela primeira vez na vida.

E morrendo de inveja do meu vô Jibóia...

Nairson Luiz Santos
Enviado por Nairson Luiz Santos em 21/12/2011
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