O colocador de pronomes
Há cinco anos, escrevi uma crônica, intitulada Gritos Inaudíveis. Inspirei-me no livro Gritos da Saudade, de autoria de um parente, João Mendes da Cunha, paraibano, como eu. Na oportunidade, prestei homenagem ao poeta cajazeirense, espécime raro no mundo das letras, autor de centenas de poesias, sonetos acrosticados, glosas e décimas. João é um intelectual que defende, com ardor, o bom uso da língua portuguesa. Um mestre, como Aldrovando Cantagalo, personagem de interessante conto de Monteiro Lobato – O Colocador de Pronomes. O insigne escritor paulista é mais conhecido por sua vasta literatura infantil.
Hoje, depois de prolongado regime literário e de reler o conto de Lobato, veio-me a ideia de escrever, novamente, sobre o personagem Aldrovando Cantagalo. Redijo este texto preocupado com a agressão à gramatica, praticada por pessoas que a ferem sem dó nem piedade. Placas, letreiros, discursos, diálogos coloquiais e até livros de imprudentes escritores maltratam o vernáculo com imperdoáveis erros de ortografia, concordância verbal e nominal e colocação de pronomes. Na internet, o mau uso da gramática deixaria o personagem de Monteiro Lobato indignado.
Diz o conto do ilustre paulista, que certo funcionário do cartório da cidade de Itaoca apaixonou-se pela jovem Laurinha, filha do coronel Triburtino, também pai de Maria do Carmo. A primeira, linda garota de dezessete anos, contrastava em beleza com a irmã, que além de mancar da perna esquerda era meio amalucada. O namoro, conforme a época o permitia, era exercido com base em flertes, escondidos do pai da moça, que a vigiava severamente.
Um dia, o escrevente apaixonado mandou um bilhetinho à namorada. O recado foi interceptado pelo coronel Triburtino, levando-o a convocar o jovem escrivão à sua residência. Em ali chegando, foi conduzido à biblioteca, para breve interrogatório:
– É sua esta peça de flagrante delito?
O rapaz empalideceu. Tremia, enquanto buscava alguma possibilidade de fuga. Não tendo como sair daquela situação, respondeu positivamente. O coronel, sem demora, declarou-o noivo de sua filha. O rapaz renovou o fôlego. O sangue, antes ausente da face, reapareceu instantaneamente. Radiante sorriso aflorou-lhe os lábios. Sem conter a emoção, disse ao futuro sogro:
– Beijo-lhe as mãos coronel!
A fisionomia do escrevente mudou, quando ouviu o velho chamar, em alta voz:
– Do Carmo, venha abraçar o seu noivo!
O jovem funcionário do cartório corrigiu-o:
– Laurinha, o senhor quer dizer...
– Você mandou o bilhete à Laurinha, e escreveu “amo-lhe”. Se a amasse, deveria dizer: amo-te. Dizendo amo-lhe declara que ama uma terceira pessoa. Portanto, não pode ser outra, senão a Maria do Carmo.
Não havia como fugir da situação. O notário casou-se com do Carmo, a manca e adoidada. Do casamento, nasceu Aldrovando, que veio ao mundo em virtude de um erro de gramática.
Aldrovando Cantagalo era profundo conhecedor das regras gramaticais. Dominava-as com a sabedoria dos grandes mestres. Sofria ao deparar-se com ataques ao vernáculo. Os erros encontrados em placas, panfletos e em outros meios de comunicação escrita e oral eram prontamente corrigidos, na tentativa de evitar sua vergonhosa divulgação.
Certo dia, passeando pelas ruas da cidade, deparou-se com uma placa que dizia: Ferra-se cavalos. Procurou o proprietário do estabelecimento, convencendo-o a corrigir o erro. Saiu dali, alegre, ao ler a nova expressão, estampada em letras garrafais: Ferram-se cavalos.
Em sua luta pelo bom uso da língua portuguesa, Aldrovando chegou a instalar escritório, para consulta ao idioma português, e ainda empenhou-se junto ao Congresso Nacional de sua época, visando obter leis draconianas que castigassem a quem ferisse a gramática. O ilustre intelectual ficou decepcionado com o desinteresse dos congressistas e da ausência de clientes a seu consultório gramatical. Deputados e senadores consideravam as leis requeridas iguais a um patíbulo, onde eles seriam as principais vítimas; os outros eram ignorantes demais. Não entendiam o valor das propostas benfazejas do insigne gramático.
Por não ter suas inúmeras obras publicadas pelas editoras de seu tempo, que as rejeitaram por considerá-las de pouco valor comercial, ele próprio as editou, efetuando as correções de impressão, tão comuns ao sistema de linotipo. Por deferência, dedicou-as ao frei Luiz de Souza. Assim: À memória daquele que me sabe as dores.
Recebidos os compêndios, alegremente passou a oferecê-los aos intelectuais de seu círculo de amizade. O primeiro deles foi ao ilustre advogado brasileiro doutor Rui Barbosa. A dedicatória expressava o valor de sua amizade ao baiano. Abrindo a folha, na qual escreveria seu reconhecimento e admiração a Rui, Aldrovando deparou-se com inaceitável erro de impressão. A homenagem ao frade amigo fora reescrita, com incorreção, pelo incompetente editor. Dizia:
"À memória daquele QUE SABE-ME as dores".
O gravíssimo engano, destacado em relevo na dedicatória a frei Luiz de Souza, causou a morte instantânea de Aldrovando Cantagalo, o ilustre gramático, notável por suas obras de incomensurável valor. Ele, que nascera em virtude de um erro gramatical, morreu vítima de outro.
Encerro esta história, utilizando frases do conceituado autor do conto – O Colocador de Pronomes, o também destacado homem das letras, Monteiro Lobato:
"O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes".
Digo eu: Senhor, castiga o que atropela a gramática e ainda se vangloria por jamais ter lido um único livro.