Vacas mutantes

Vacas mutantes

O romance seria a história de pessoas contando fatos, que se intercalam, ou calam, em cena, com a entrada de outros personagens, que passam a falar de situações, sendo o fio condutor o dia-a-dia de atos, sonhos, ilusões, alegrias, frustrações e desvelos.

A conduta pessoal também se baseia na política. O amor também é uma questão política. O que se sente, aspira, em um dado momento, talvez já não seja o mesmo em outro momento. Somos muitos dentro de nós e, também dentro de nós temos interesses a arredondar, compor. Que se dirão das relações próximas, com o irmão, o amigo, a amante? Na pureza e nos compadrios também aí se fazem cálculos. Isso não conspurca o companheirismo.

O discurso sobre os desejos, as intenções, de certa forma obscurecem a beleza, o prazer e o sofrimento necessários á riqueza do trajeto.

Há que se construir uma versão não dita das coisas que se pretendem. A palavra mata o significado restrito e, levada com cuidado e zelo, pode ajudar a esculpir uma idéia. Mas há muita impedância na comunicação. Entre uma vaga idéia que se pensa perceber, seu enunciado e o que decodifica o ouvinte, existe uma zona de incompreensão imensa.

Há de se ouvirem as palavras como se observa o trabalho do escultor. Seus cortes iniciais na madeira bruta excluem dali o que sobra da imagem final que antes já se visualizava. Muitas vezes, o ouvinte se perde em cortes não compreendidos, se cansa, para de acompanhar e vai se embrenhar em outros afazeres. Na volta vê ali naquele tronco rude a estátua final que dele tirou o artista.

Com as palavras é diferente. Se pararmos de acompanhar os cortes, a idéia se perde. É assim a conversa ansiosa dos homens de nosso tempo.

É mais da leitura dos silêncios, e de seus significados, que se constroem os jogos políticos. Como na história do trem vera cruz, indo para o Rio de Janeiro, dois políticos se encontram. Um diz ao outro que iria para Barbacena e , mais tarde, o outro comenta com seu correligionário que o político, que dizia estar indo a Barbacena, teria dito isso para que se pensasse que ele não iria àquela cidade, mas, na verdade mesmo, era para Barbacena que ele estaria indo. É um jogo de encenações, ás vezes necessário à natureza dessas relações.

Também, sobre outro aspecto, as palavras são apenas intenções, de um dado momento. São também sinais do que se oculta tanto no relacionamento político quanto no relacionamento pessoal. Conhecemo–nos tão pouco, menos ainda a realidade social, seus diversos tipos de interesses, suas expressões mal formadas, rudimentares. Somos desajeitados monstros antediluvianos tentando consertar invisíveis relógios suíços. Nossas mentes, as do mundo, ocultam mais do que mostram.

Trabalhamos no mundo com coisas que dele não são. Os Beatles diziam “Nothing is real”.

O capitalismo produz mais desejos que coisas.

Desejos descabidos para os homens e suicida para o planeta.

As idéias sociais e pessoais são o contrário das esculturas. A enunciação muito especifica e radical de uma idéia, desejo ou projeto, pode também cercear sentidos, emascular seu trânsito interpessoal.

As palavras (e as idéias) são esclarecedoras e perigosas. Elas libertam e enclausuram.

Ho Chi Minh, citado por Mia Couto, quando respondia à pergunta “Como , naquelas circunstâncias , lhe foi possível produzir tanta ternura?”, dizia:

“- Desvalorizei as paredes”

Os enunciados humanos patinam em pântanos. As cercas que delimitam as intenções nas relações pessoais e políticas são relaxadas e imprecisas. Como cercar idéias? As idéias são como vacas enormes, sem marcas, sem vaqueiros, sem donos, perdidas em alheios pastos imensos, alterando formas como nuvens, se adequando, virando outras.

Quer coisa mais concreta que o abstrato? Os sonhos são mais reais que os mundos que sobre eles se dobram.

Impérios são criados sob angústias e tacadas. Podem terminar em frenesis descabidos de medos em bolsas de valores.

Os dinheiros são compromissos registrados em bits não indenes a vírus e são os sustentáculos, as estruturas, do atual grande império capitalista internacional.

Esmiuçar os detalhes dos desejos, aspirações e significados engessa o entendimento.

Existe algo anterior ao texto, ao enunciado. É essa coisa contingente, que permeia tudo, que realmente desvaloriza as paredes da prisão. As prisões não se encontram apenas nos que escrevem. Em cada leitor estão erigidas muralhas de difícil desvalorização.

Há de se empreenderem demolições nas construções. As construções são, talvez, demolições.

O texto literário poderá ser aquele que mostra o que oculta ou aquele que se acerca de palavras e conceitos para tentar laçar as vacas mutantes desses desencontrados pastos. Um texto alternador de direções, criador de vácuos intencionais, bombardeador de estruturas, de outras idéias vencidas... que tentam prevalecer, é sempre buscado pelos poetas.

Muitos falantes para públicos especializados discursam sobre o que não querem que pensem que está sendo dito, tentando limpar impressões que, possivelmente estejam sendo construídas nas cabeças dos ouvintes.

No mundo da notícia e das idéias como se precaver de palavras e entendimentos que sugerem verdades maciças para situações que não se pode apropriar? Como falar com simplicidade de coisas tão complexas, sem empobrecer as idéias?

Tanta filosofia, literatura, psicanálise, teologia e ideologias!

Que de novo poderia ajudar a descortinar clarezas sobre a contingência humana? Ver o que se oculta e o que se mostra nesse mosaico mutante. Ver e sentir outro ser humano conosco, comungando uma sensação parecida?

A maior solidão é a incomunicabilidade das surdas visões que não se encontram.

Tentamos falar ao amigo, o próximo antigo.

Eles não conseguem acompanhar. Existe a situação em que a pessoa não conhece minimamente os conceitos através dos quais se discorre e, por isso, o entendimento é impossível. Aí atua sempre essa discrepância quanto ao sentido das palavras e dos conceitos,mas o meu amigo pode também estar desinteressado.

Diversas vezes em minha vida, alguém não me ouviu. Quantas vezes também não ouvi alguém? Isso, com o tempo me distanciou um pouco das pessoas. A indisponibilidade para a escuta é também uma forma de prisão.

Rusgas entre significantes e significados: O amor, o que é o amor? Quem dele diz? Para quem? Quem ouve? De quem? Quando dizem e quando escutam? Que problemas existem nas possibilidades desse sentimento?

Outros conceitos, outros sentimentos, suas metáforas, suas tentativas de comunicação?

Neste mundo de olhos... e de verdades, aparentemente injusto, como fazer perpassar por tecidos tão distintos percepções fugidias?

Rasgado no chão da avenida vespertina,

o corpo ensangüentado do poeta jaz,

coberto pela surda cartolina,

do movimento pela paz

Ao lado, o assassino demente, farrapo alucinado, morador das injustas ruas do mundo. Em suas cabeças habitavam versos? De uma, saíram alguns, de outra, se perderam no craque, na cola e nos tresloucados gestos.

Mas fizeram versos, e desatinos.

Qual é a verdade?

É disso que trata, para mim, a literatura... e a vida. Não se tenta encontrá-la. Objetiva demonstrar as dificuldades de ser encontrada, e compreendida. Mostrá-la quase inalcançável, é uma forma de mostrá-la. Na realidade, ela existe na precariedade e na não conclusão, como o ser e o mundo, vagos e imprecisos, sôfregos de significação

Em cada sentença, muitas cabeças?

Formatação de cérebros! ideologias!

Ficção ou realidade. Toda vez que ouço uma versão de uma história ocorrida com alguém, ou de uma idéia, vejo transbordar teor ficcional. E nas histórias que povoam a literatura às vezes vejo muita desvestida humanidade. Que é mais ficcional? O que faz o homem correr atrás de desejos disparatados ou atrás de certa inalcançável lucidez jamais encontrada?

Contar histórias mostrando o seu avesso? Lacunas desvestindo o real?

O ritual do “toma uma lá” traz a força da confraternização. Na realidade, uma lata de cerveja é um abraço, um carinho.

Durante e depois da separação, ocorreram muitas perversidades. O casamento era eterno sacramento que cancelava a fugacidade da vida. Aquele tempo e toda a disponibilidade para esse impossível projeto terminaram em ódio e rudeza. Já perdoei, mas é como perdoar o sentenciador da morte súbita.

Fugi do malabarista de sinal que iria começar a apresentação enquanto eu atravessava na faixa de pedestres e que gritava com aspereza, agressivo, excessivamente alto. Gritava como quem fala em um comício, denunciando simplista e implacável, as pretensas injustiças desse mundo desconhecido.

Prometi ir até ela e abraçá-la, mas amputaram-me as pernas e segaram meus braços.

31 de junho de 2007

Raw Lin Son
Enviado por Raw Lin Son em 01/12/2011
Reeditado em 22/12/2011
Código do texto: T3367384