Hospital
O Hospital é onde tudo é doença. O ar é doentio, respiramos a morte. Lugar onde não se deseja estar, mas que fatalmente estamos. Atmosfera moribunda. Pacientes, uma vez lá, são doentes. Cuidados que os outros fazem por você. Não. Fazem pela doença. Lá se recebe a dor, estuda a dor, fabrica a dor. Drogas que proliferam em aromas sufocantes. Cores brancas. Apáticas. Que nos deixam lânguidos, desesperançosos, entregues. Onde o choro é ignorado, habitua-se com o trágico, a indiferença diante do sofrimento reina. O paciente não tem paciência. Ambulâncias que te privam de ser ambulante, tornando-o sedentário, preso a cateteres. Sem nomes, tratados a partir de códigos, senhas, apenas outra significação.
Enfermeiros que amparam, limpam, deixam sujar. Caras com a mesma expressão das fezes que recolhem. O cheiro se mistura, além da farmacologia, temos feridas pútridas, dejetos expostos, aglomerado de odores humanos. Médico com seus laudos, relatórios, clinicando, investigando, cobaiando seres. Experiência higiênica que torna o sujeito um “isso”. Não se diz o fulano, mas o aidético, não mais o sicrano, e sim o tuberculoso. Nomes de pessoas serviam de epíteto a doenças, agora são nomes de doenças que são epítetos de pessoas despersonalizadas.
No hospital, hospedam-se adoentados, acidentados, aquilo que se torna ineficaz, diante da lógica de uma sociedade de estética do corpo. O corpo doente deve ser enclausurado, como os antigos leprosários que depois seriam hospícios, que o diga a “História da Loucura” do ilustríssimo Michel Foucault. Mais do que isolar, existe o estigma da doença, como a marca de Caim, o sujeito se torna amaldiçoado, pior, anormalizado. Possui atributos negativados que podem contaminar, como a alegoria do fruto podre. Nem as crianças escapam dessa nefasta analogia, a precocidade indesejável. Os pais não se orgulham de dizer que os filhos estão enfermos.
O médico possui o poder do resultado, onde condena ou absolve, conforme a soma de dados reunidas. Será também aclamado ou abominado, conforme os benefícios ou danos causados. Andam indiferentes em meio ao sofrimento, numa frieza que é hábito, observando aqueles camisolões brancos uniformizados, que dão a prévia do morto porvir, o fantasma. Assumem o papel de carrasco, dão a sentença de morte, executam o condenado. Também infligem duras penas, tanto em forma de reclusão, quanto de prolongados tratamentos dolorosos.
A moral hospitalar é baixa, perde-se o pudor. Aquilo que aprendemos a esconder, nesse ambiente aparece desnudo, o corpo todo revelado. Mas aparece sob caráter de anomalia, exposto por estar infectado. Viram o rosto ou olham com desprezo aquele nu doentio. Mesmo adultos defecam nas calças, ao contrário do hábito infantil reprimido. Precisam ser tutelados, por quem não possui a mesma dedicação de familiares, são assistidos, mais do que visitados. Monitorados, não pelo que são, mas pelo que se tornaram, na verdade assistem apenas a doença, ela é importante. Se estacionou, algum agravante, enquanto a vítima, o hospedeiro, é manipulado.
O soro mistura-se ao choro, ambos com aquele amargo gosto. O silêncio impera, feito norma de templo budista, é preciso tentar meditar, já que o corpo padece, a dor se faz presente. Luvas, procedimentos, para tatear sem tocar. Máscaras que escondem a boca, a fala sai feito manifestação acústica de um plano imperceptível. A boca mexe e não damos conta, a sonoridade faz perceber que provavelmente tenha se articulado. Os instrumentos esterilizados, nem mesmo as ferramentas de açougue deverão nos tocar sem o devido preparado. Contaminamos cada objeto, por isso muitos são descartáveis, como diversos doentes, corpos substituídos por outros corpos. A rotatividade como de um motel, só que em vez de amor, fabrica-se desespero, um drive-thru funéreo. Troca-se as roupas de cama, troca-se os remédios, troca-se os médicos, troca-se o paciente vivo ou morto. O vivo de hoje será o morto de amanhã, a lógica inversa não ocorre.
Os corredores com odor nauseabundo, macas receptivas, enfermaria com suas divisórias. Ainda que as cortinas sejam desagradáveis, são menos terríveis do que as divisas do Centro de Terapia Intensiva. Onde muitos já se fazem cadáver ainda vivos. Corpos desfalecidos, interligados a tubos, cilindros, em uma mecânica de agonia. As maternidades recebendo novos hóspedes, que no futuro habitarão outras alas do hospital, enquanto a porta dos fundos do Pronto Atendimento, despeja cadáveres, para serem recolhidos por funerárias, bombeiros, muitos transportados ao Instituto Médico Legal.
Ali dentro o médico que estuda o câncer, fuma. O paciente que odeia aquele ambiente, sairá cometendo os mesmos atos que o conduzirão até ali. O processo é remediar e liberar. A lógica do Fast Food. Legiões de dependentes. Dependência química, física, psicológica, moral, institucional. Espera-se a cura, com a sombra da doença espreitando. É inevitável ficar doente, a cura de hoje é a doença de amanhã, a saúde é apenas o adiamento do laudo doentio. Perdemos a dignidade, entramos cabisbaixos, somos amparados, as muletas serão nossos membros.
Mutilados, assujeitados perante a mercadológica regra das necessidades carnais. Não precisam de um sujeito, apenas de um fígado, um coração. É o transplante, implante. Produzimos a todo instante nossos frankensteins, juntando partes, fazendo emendas, cozendo pontos. Ao mesmo tempo cortamos dilaceramos, rompemos cordões umbilicais, vazamos, escorremos. Em muitos procedimentos, a dor é nosso guia, dando indicações do que se procura ou incentivo para procedimentos que sem esse motivo, jamais nos submeteríamos. Somos virados, revirados, desdobrados, expomos o que a estética do falso fora esconde, carne, sangue, ossos, vísceras.
Existem os que apodrecem, as escaras, as feridas purulentas, os gazes, os gemidos, os desatinos. O botão que acende, na falta de voz para pedir auxílio. Como os semáforos, as luzes de emergência são ignoradas, mesmo com risco de morte. O que a morte em um ambiente que lida com o fatal a cada momento? É apenas mais um procedimento, habitual, cotidiano, comum, vulgar, o percebido despercebido. Os brancos impecáveis dos uniformes. Em contraste, tudo que os pacientes expelem, sangue, urina, fezes. A doença é suja, o médico é o serviço de limpeza, sendo que os enfermeiros são os garis. Embora muitos médicos se fazem de garis, administrando a sujeira.
O silêncio é sempre quebrado, dando o alarde. Sirenes histéricas, gritos medonhos de dor ou pavor diante da morte percebida. A comida insossa, como o uniforme, o ambiente. Sabor de nada. Olheiras são notórios adereços. As grades e a segurança demonstram a herança prisional. Ali dentro deve-se seguir a rotina penitenciária, com hora para banho, alimentação, uniforme adequado, inspeção de supervisores rigorosos, além de atender normais para poder ser liberado, libertado. A burocracia é pesada, não menos que o ambiente. Existem formas de fuga, convulsionando, ficando em estado comatoso, o corpo preso e a mente diluída, esperando os últimos acordes sinápticos para a conclusão dessa sinfonia lúgubre.