Pai, o problema é só seu mesmo?

Nasci nos anos 70, época em que era bonito fumar. Campanhas contra o tabaco eram a rigor, inexistentes ou restritas ao espaço dos ambulatórios e hospitais. Os adultos daquela geração foram fartamente alimentados com imagens do glamour da era de ouro de Hollywood, ícones do cinema, celebridades e socialites, todos com seus cigarros à mão. Não era de se espantar que o fumo fosse algo tão popular. As propagandas de cigarro estavam invariavelmente, entre as mais caras, sofisticadas e emblemáticas peças de publicidade de então. Uma lembrança que tenho de infância, é a cena comum das mesas dos restaurantes, sempre com um cinzeiro, o ambiente enfumaçado pela presença de um ou às vezes mais de um fumante por mesa. Outra lembrança é a da mesa lá de casa mesmo, onde meu pai costumava fumar. E mesmo então, eu um pirralho (de que, quatro anos? Talvez cinco?) já achava desagradável a fumaça do cigarro, e mais ainda à mesa na hora de se comer. Lembro de reclamar com meu pai. Se ele achava graça, desconversava, ou fazia algo capaz de diminuir meu desconforto, bom aí a minha memória já não chega ao detalhe.

Passou o tempo, vieram campanhas de conscientização, a informação aumentou. Mas mudar toda uma cultura leva tempo, pode ser difícil, e mesmo hábitos danosos à saúde podem ser muito difíceis de perder. Meu pai tinha um histórico de saúde complicado. Desde jovem, segundo minha mãe contava, tinha enfrentado algumas enfermidades que diminuíram consideravelmente sua saúde. E de quaisquer hábitos ruins para a saúde que tivesse, segundo ela, o fumo sempre foi o mais freqüente. Se em algumas épocas se alimentava mal, em outras tinha um bom apetite. Se em certos períodos tendia a perder um pouco a mão na bebida, em outras mantinha-se longos períodos sem beber nada alcoólico. Mas o cigarro, esse não... era companheiro constante, compulsão assumida, muleta, dispositivo indispensável à sua existência. Tendo em vista o cenário montado, não era de se espantar o final do espetáculo: meu pai morreu cedo, aos 55 anos. Vítima de complicações de uma doença crônica que nada tinha a ver com o hábito de fumar, diretamente. Porém, segundo os médicos, tratava-se de uma doença que se bem administrada e tratada, permitiria que qualquer um que a tivesse levasse uma vida praticamente normal até uma idade avançada. Desde que cuidasse de sua saúde. Lembro de, aos 16 anos de idade, chegar um tanto timidamente ao lado do médico e perguntar se o fato de meu pai fumar muito teria adiantado ou contribuído para a morte. “Ah, com certeza”, foi a resposta. É algo difícil de se esquecer.

A vida passa. A gente cresce, segue adiante, mas confesso sentir uma saudade grande do velho. Talvez especialmente doída, por ser mais uma saudade do que não vivi, do que faltou, do que não houve. Meu pai era o tipo de cara pra se curtir na vida adulta. Era um cara inteligente, boa conversa, culto. Que maravilha teria sido sentar com ele num fim de tarde pra falar de cinema, de política, de coisas do mundo. Isso era a cara dele. Mas não penso nisso de uma forma egoísta. Modestamente, creio que teria sido bom pra ele também. Creio que ele gostaria de ver o moleque pequeno dele ter se transformado em homem, e que ele teria gostado de ver que era um homem que gostava de conversar tanto quanto ele, que gostava de um papo inteligente, de assuntos semelhantes e tudo mais. Seria bom para os dois.

Por tudo isso, não consigo deixar de sentir um desconforto quando vejo alguém defendendo o “direito de ser viciado”, o “direito de usar uma substância”, o direito do “quero ser fumante sim, quem se ferra sou só eu”. Me parece de uma hipocrisia profunda, a pessoa usar pra isso o belo e consagrado nome da Liberdade Pessoal enquanto conceito amplo. Parece hipócrita, pois a pessoa o faz para justificar e/ou defender um vício seu, um movimento que provém de uma necessidade interior, de um impulso que se bem analisado, torna todo viciado um egoísta. Claro que isso pode ser aplicado a várias outras substâncias, drogas, mas como aqui a questão é a minha história pessoal, falo do vício no cigarro apenas. Até para evitar infinitos desdobramentos que fariam esse texto perder seu ponto. Meu pai fumava, fumou por anos. Mas justiça seja feita, nunca ouvi da boca dele um “fumo mesmo quem se ferra sou eu” ou um “me deixa, é problema meu”, frases que já ouvi mais de uma vez de mais de um amigo ou conhecido nessa vida afora.

Bem, lá se vão vinte e um anos que meu pai é falecido. Há poucas semanas, minha mãe foi submetida a uma cirurgia complicada. Coisa de coluna, onde precisou ter acesso pelo tórax, coisa grande, seis horas e meia de procedimento. A família toda no suspense, praticamente acampados na frente do centro cirúrgico. Aguardando as notícias e tudo mais. Acontece a cirurgia, felizmente tudo corre bem, os médicos aliviados ao saírem da “batalha”. Numa das conversas ansiosas que temos ao fim de uma coisa dessas, pergunta daqui se correu tudo bem, responde dali da melhor maneira possível, e tudo mais, eu ouço uma pergunta: “Sua mãe fumava?”. Respondemos que não. O médico faz cara de surpresa, diz que a coloração do pulmão da minha mãe (que, repito, não era nem de longe objeto da cirurgia) era bastante característica. Nesse momento, não consegui deixar te sentir uma ponta de raiva do meu falecido pai. Mas rapidamente desviei o ódio para aquele vício maldito, que vinte e um anos depois, se fazia lembrar. Deixando a sua lembrança através de um fumo passivo, de alguém que amava aquele homem que, por escolha própria, decidiu se destruir aos poucos. E deixar uma pequena lambrança dessa destruição, para cada um de nós, seja na saudade que sinto de sua partida prematura, seja nas manchas nos pulmões de uma senhora de 77 anos submetida a uma perigosa e cansativa cirurgia de seis horas e meia. Vício maldito.