MAIS VALE UM ACASO NA MÃO QUE DOIS POMBOS VOANDO

MAIS VALE UM ACASO NA MÃO QUE DOIS POMBOS VOANDO

por Jaya Hari Das

Sempre suspeitei do acaso; sempre o considerei como “a feliz fresta por onde escapa a ignorância de quem vivencia ou presencia um evento”. Algo que se passa inusitadamente comigo ou com outras pessoas deixa a impressão de “descompromisso com o destino”, ou com a cadeia causal de todas as coisas do mundo. O acaso, no entanto, existe, mas apenas como afecção da nossa compreensão ou sabedoria de como e por que algo houve de ser, e nunca como “o sagaz agente da surpresa”, como muitos de nós somos levados a crer. Foi assim que, estando eu num banco de praça, na minha cidade natal, onde cresci observando as gentes, flagrei cenas inusitadas, que, meio sem querer, abrilhantaram aquela tarde de setembro.

Sempre fui um observador da cena urbana – uma espécie de cameraman free lance. Sempre procurei descobrir se aquelas pessoas que vejo estão tristes ou alegres, sérias ou descontraídas, vívidas ou apáticas. Procuro descobrir mais – quero saber por que estão daquele jeito, o que teria acontecido ou, talvez, o que irá acontecer com elas? Sempre gostei muito de jornais e revistas, também. Engraçado! O que gosto não é bem de lê-los, mas de vê-los. Gosto de vê-los expostos nas bancas (é comum haver uma banca de revistas nas praças); das revistas, gosto de suas cores, de suas fotos, de suas manchetes, de quase tudo... Também gosto de livros. Se eu pudesse, compraria muitos, mas sei que não leria todos – só aqueles que realmente falassem do que eu gosto – da vida, das pessoas e dos sentimentos – ah, e, quem sabe, de pombos também!.

Naquele dia, tendo encerrado meu dever de professor de Filosofia, não fui fazer o que geralmente faço – sentar num bar, pedir uma cerveja bem gelada, pensar na vida – na vida, não, na minha vida –, olhar as pessoas passando e jogar conversa fora com um ou dois sujeitos que mal conheço – na verdade, que teria acabado de conhecer e que, portanto, conheceria muito mal. Não, não fiz isso. Olhei a praça, um tanto vazia, um tanto calma, convidativa. Olhei uns pombos, que vinham e iam em revoadas. Lembrei da minha infância – ah, como eu gostava de enxotar pombos! Eu chamava a isso de “voar os pombos”. Lembro-me que, enquanto passeava com meu pai, indo geralmente à feira, à mercearia ou à padaria, assim que avistava pombos, pedia: “Pai, vamos voar os pombos?!”. Ele sempre “voava os pombos” comigo, mas nunca corria na frente, sempre me deixava pensar que eu era o mais ligeiro. Depois de “voar alguns pombos”, a gente ria, como se só nós dois soubéssemos fazer aquilo.

Bem, mas voltando à praça, sentei-me num banco (um dos poucos em razoáveis condições de uso) e fiquei olhando as pessoas passando daqui para ali, de lá para cá. Às vezes, conseguia ouvir parte do que falavam – quando eram mais de uma, é claro (se bem que é cada vez maior o número de pessoas que falam sozinhas, eu mesmo já sou uma delas) –, às vezes, acreditava ouvir seus pensamentos, quando passavam sozinhas, caladas. As expressões nos seus rostos pareciam querer me confessar alguma coisa, sei lá! Não ficava olhando diretamente para elas, ou para alguma parte delas em particular – as pessoas ou ficam sem jeito ou ficam irritadas quando alguém desconhecido olha nos olhos delas ou para alguma parte de seus corpos – a maioria desvia o olhar, ou olha para onde estamos olhando nelas. Elas ficam bravas, mas é engraçado!

Vi uma senhora que me causou muita curiosidade. Pude olhar disfarçadamente para ela por um bom tempo, porque ela andava bem devagar – mas bem devagar mesmo! Creio que meu “disfarçadamente” não deu em nada, pois a todo momento seus olhos cruzavam com os meus, quando eu ia olhando para ela. Quando a vi mais de perto, me surpreendi – tinha um rosto que aparentava ainda novo para aquele andar tão “velho”, tão acabrunhado. Imediatamente pensei em minha avó Emília, mãe do meu pai – a única que conheci. Lembrei de quando eu ia à casa dela e tomava café com bolachas salgadas (café preto, puro – nunca gostei de café com leite). Ela sempre voltava para ver se eu estava comendo “direitinho”, e eu já tinha devorado tudo, então, tinha o direito de ganhar outra coisa, guloseimas ou uns trocados.

Lá, na praça, vi também uma garota com um cachorro – não gosto de cachorros, não é bem do animal em si – acho que representa para mim uma ameaça –, acho que é algum trauma de infância. A garota falava com ele; dava umas broncas, mas o cão parecia não se importar muito, não. Ele, com aquela língua para fora da boca, pingando aquela saliva (nojenta!), trotava garboso sem dar atenção às palavras da menina. Eu não sei por que as pessoas criam esses bichos – gato, cachorro, papagaio. Criar passarinho é uma maldade! Onde já se viu acreditar que um bicho voador daqueles pode cantar feliz dentro de uma gaiolinha daquelas? – nem numa gaiolona, que fosse! Mas os preferidos mesmo dessa gente que gosta de criar animal são cachorro e gato. Eu não os suporto! Um não pode ver visita na casa que fica latindo, atrapalhando a conversa alheia; o outro fica se esfregando nas pernas do visitante, miando um “gemidinho” de enlouquecer qualquer um. Para que criar esses bichos?! Sei não!

Na praça, bem defronte ao banco em que eu estava, chegou um casal de namorados. Pararam perto de um banco e, em pé mesmo começaram o “agarramento” e o “beijamento”. Daí, sentaram e começaram tudo de novo. Teve um momento que ficaram quase cinco minutos no mesmo beijo, parecendo duas estátuas de praça. Lembrei da minha primeira namorada – Deus do céu! Ali tinha formosura! Lembrei de quando a gente ia brincar de se esconder, que se escondia tanto que ninguém achava a gente. Teve até um tempo em que a mãe dela, sabendo de certas “estórias”, proibiu que ela brincasse disso. Quando eu perguntei a ela: “Mas, por quê, Silvinha?”, ela respondeu: “Mãínha, disse que não é brincadeira de moça séria essa coisa de desaparecer assim, da vista dos outros, por tanto tempo”. Aí, a gente não brincou mais. Uma pena!

Dizem que praça é lugar de velho e de casal de namorados. Eu digo que é lugar de gente e de pombo. Às vezes, mais de gente do que pombo, às vezes, mais de pombo do que gente. Uns que voam, outros que ainda não sabem voar – mas sabem pôr pombos para voar. Aliás, acho que todos voam. Às vezes, as pessoas voam só no pensamento, às vezes, só o pensamento voa – assim, igual aos pombos, para lá e para cá. Eu vejo essas pessoas e vejo esses pombos, tentando descobrir por que voam, por que vão, por que voltam. Uns voam tão devagar, outros tão ligeiro; uns beijam no ar, outros, pousados.

Aquela tarde me deixou com várias indagações: será que os pombos me viram ali, sentado naquele banco de praça? Será que também procuraram descobrir por que eu estava ali e como eu me sentia naquele momento? Será que têm algum parentesco com os pombos da minha infância? Será que sabiam que era eu quem botava seus pais e tios para voar? Será que foram ali fazer o mesmo comigo? Será que foram ali apenas para ver se eu já tinha crescido? Ou será que tudo foi apenas mais um caso do acaso?

Jaya Hari Das
Enviado por Jaya Hari Das em 03/11/2011
Reeditado em 13/03/2013
Código do texto: T3315480
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