Um Deslize
Dia chuvoso, carro em estado de conservação duvidável, motorista com pouca perícia. Uma descida de um viaduto que leva a subida de outro. Não subo, vou para a esquerda. Um caminhão ao meu lado, os dois não passam naquele vão, um outro atrás do que está ao meu lado, o carro que guio não terá condição de competir.
Penso em acelerar, mas a avaliação das possibilidades é feita em segundos, maravilha do cérebro humano diante do inusitado. Começo a reduzir e o caminhão se distancia, o outro ainda não chegou na lateral, passamos os três, eu entre eles, mesmo estando na lateral. Foi possível por um preciso cálculo.
A visão de um rio à frente, não existe condição de enxergar o que existe sob as águas, talvez imensas crateras escondidas, a espreita, desejando engolir estes pneus de condição não muito apresentável. Já estou nessa atmosfera, o outro caminhão colado, não posso me livrar disso. Adentro aquele volume aquoso.
O segundo caminhão, na verdade é uma carreta, a extensão retangular denuncia, passando ao meu lado, cortando as águas, provocando ondas que fazem meu veículo balançar. Nesse instante eu deslizo, o carro parece patinar sobre uma camada de gelo, a superíie aquosa parece plana e rígida. O que chama de aquaplanagem acaba de ocorrer.
São segundos, a relatividade do tempo é impressonante, pareciam minutos com formatos de horas, a vida caminha lenta num momento que expectadores devem ter contemplado de forma rápida. O mundo gira, porque eu estou girando. O carro que gira, eu dentro dele vou observando a rotação.
No rodopio desvairado, vejo água, caminhão, ondas, um muro crescendo em minha direção, outros carros, faróis, está de noite, mais água, o caminhão se foi, os carros de novo, faróis, ondas, água e o muro vindo. Nesse instante estabilizo. Um estabilizar ainda tentando traçar um "S".
Consigo controlar o volante a pulso firme, não sei mais onde estão os objetos que bailaram dentro do carro. Sei que eu estou ainda atrás do volante, agora a vinte quilômetros por hora, velocidade mais do que reduzida. A chuva continua caindo, os carros me ultrapassando, outros caminhões, faróis, o rio ficou metros atrás, o muro ainda segue acompanhando-me pela lateral, fitando-me com desejo de ainda me ver colidir nele, como num desejo de suicídio murístico.
Sigo calmo no velocímetro, acelerado nos batimentos cardíacos, logo estarei em casa, em repouso, nada mais desse tipo de movimento, carro estacionado e chuva do lado de fora, sem rio, sem muro, só paredes, cama e pensamentos.