Lágrimas de gás e "galinha-gorda"

Talvez motivado pela fase "quarentiana" de vida, quando as mais diversas associações de palavras e imagens nos remetem à infância e à adolescência, nos últimos tempos tenho andado propenso a recordar passagens da minha história. Felizmente, as lembranças quase sempre têm arrancado mais risadas do que lágrimas, embora estas últimas sejam ótimas para lavar a alma quando atreladas à melancolia.

Há poucos dias, numa lanchonete, vi um garoto tomando uma garrafa de refrigerante "no gargalo", o que instantaneamente me levou a recordar um episódio ocorrido há mais de três décadas. Ele e o outro que conto a seguir são referentes ao meu primo Sérgio, que reside em Salvador e é uns cinco anos mais velho do que eu.

Eu devia ter 8 anos quando a história aconteceu. Era a época mais esperada do ano, as longas férias de verão, um período em que muitos filhos de boanovenses que moravam fora apareciam para passar dezembro, janeiro e fevereiro em Boa Nova. Era o caso de Sérgio. Quem o conheceu na adolescência sabe o quanto ele era chegado a algumas "malvadezas inocentes" (se é que elas existem).

Devia ser um domingo, antes do almoço, pois fui ao bar de Tio Petrônio comprar algo a pedido da minha mãe. Chegando lá dei de cara com Sérgio, que tinha seus 13 anos. Ele, muito "bondoso", ofereceu-me "do nada" uma Coca-Cola. Inocentemente, aceitei e ainda agradeci antecipadamente, sem imaginar o que viria depois.

Tio Petrônio, então, pegou a garrafa e um copo para me servir, momento em que foi interrompido por Sérgio. Com plano certamente arquitetado, ele saiu com essa: "pra que copo; a moda em Salvador é tomar Coca-Cola no gargalo". Eu, menino puro do interior, acreditei e me pus a beber o refrigerante do jeito que meu primo sugeriu. Tão logo eu levei à boca o vasilhame de vidro, ele segurou minha cabeça com uma mão e o fundo da garrafa com a outra. Resultado: intermináveis segundos daquele líquido gelado e com gás rasgando a minha garganta. Não posso afirmar se isso é possível, mas tenho quase certeza de que dos meus olhos saíram borbulhas do refrigerante. Sérgio, mesmo vendo o meu sufoco e antes que alguém pudesse me acudir, manteve seu plano até o fim e gargalhava como se ouvisse a melhor das piadas.

Alguns anos depois, já adolescente, novamente testemunharia outra "brincadeira inocente" dele. Também nas férias de verão a praça do coreto ficava tomada de jovens de todas as idades. Na década de 1980 era bastante comum em Boa Nova a mistura de turmas; adolescentes de 14, 15 anos "andando" com figuras de 19, 20.

Naqueles momentos, quando o tédio tomava conta, alguém dava sempre um jeito de inventar algum passa-tempo. Sérgio era um deles. As suas propostas, claro, incluíam brincadeiras do tipo "galinha-gorda". Considerando-se que nem as novas gerações de boanovenses devem saber o que significa isso, aí vai: "galinha-gorda" (nunca descobri a origem do nome) é uma brincadeira de jogar balas no chão em meio a um grupo de pessoas, que tem que apanhá-las rapidamente, enfrentando toda sorte de "agressões" para sair da enrascada com o máximo possível de guloseimas.

Pelas regras, qualquer um podia se aventurar a pegá-las, mas tinha que ser realmente muito rápido, senão os demais estavam autorizados a bombardear as costas do(a) infeliz com murros e tapas. No caso do meu primo, tudo estaria normal se, numa determinada ocasião, ele não tivesse empurrado para o centro da rodinha a própria paquera (o equivalente a uma ficante dos dias de hoje), alguma menina de fora que se encontrava na cidade. Isso mesmo: ele lançou balas ao chão, empurrou a namorada ao centro e começou a primeira das muitas saraivadas de tapas em suas costas. Em meio ao episódio (que nada tinha de bullying, é bom que se diga!), suas gargalhadas eram as mais altas.