Pequenos tubos de papel
Saí do trabalho aquele dia numa hora já um pouco passada. Nem tanto para tarde, mas além demais para ser a hora. O escuro já avançava sobre as luzes, que insistiam preguiçosamente acesas. Ainda assim, aquele trecho que eu percorria naquela oportunidade sempre me sugeria um eterno jogo empatado entre as luzes da cidade e as trevas da noite. E à noite, enquanto uns voltavam pra casa, e outros mudavam de lugar, algumas criaturas da noite saíam de suas tocas. E aquela era a hora em que tudo isso se misturava.
Descia a Presidente Vargas desviando de partes molhadas por líquidos que eram tudo menos água. Prestava muita atenção a buracos no calçamento de pedra portuguesa, ou o que era pior, uma das próprias pedras que estivesse solta. Era uma preocupação oportuna, já que tinha eu mesmo torcido o tornozelo tempos atrás, por conta dessa armadilha das calçadas. Bastava que uma pedra estivesse deslocada e solta, com a parte mais lisa virada para baixo, em contato com a parte igualmente lisa de outras que estivessem bem assentadas. Torção, ou tropeço, ou queda, eram todos destinos possíveis ao incauto que passasse por aquele trecho da Presidente Vargas. Um grupo de mulheres muito parecidas passou ruidosamente perto de mim. Mulatas, shorts curtíssimos. Barrigas salientes, laranjas, verdes-limão, jeans, preto, rosa shock, tatuagens péssimas, engrossadas pelo sol. Piercings no umbigo, no nariz, na sombrancelha. Risos, discurso alto, palmas batendo sem aparente razão após uma risada acompanhada de uma inclinação súbita da cabeça para a frente. Pés imundos, metidos em chinelos de plástico colorido e barato, com pequenos laços de plástico nas tiras. Mas as unhas do pé feitas, sem exceção. Uma delas cospe no chão. A mais obesa vira para trás e grita um xingamento para alguém, se real ou imaginário, ignorei. Duas compartilhavam um cigarro.
Parei à espera de uma oportunidade de atravessar a Rio Branco, perto de um carro medianamente luxuoso. Um homem de meia-idade, ainda vestido em seu terno, olhava pela janela do carona com uma expressão que mesclava um profundo desprezo e um ar de poucos amigos. Parecia alguém que tinha acabado de sofrer um enfarte, e aguardava impaciente pelo próximo. Numa das mãos, a que cutucava distraídamente com o polegar no espelho retrovisor, um cigarro aceso entre dois dedos apontava para cima. Atravessei quando um dos sinais fechou. Corri um pouco para evitar um táxi que passou na virada do amarelo pro vermelho. Provavelmente já no vermelho.
Caminhei pela calçada que margeava a Candelária pelo outro lado da rua, alguns passos ao lado de um casal estranho. A mulher tinha um corpo magro e se vestia com roupas que disfarçavam um pouco seus cansados 50 e tantos. O homem que lhe segurava uma das mãos parecia um nerd envelhecido, metido numa combinação de calça jeans, camisa social e botas que ficariam sem dúvida melhores em alguém com metade de sua idade, ou ao menos com uma postura melhor. Apesar de ter cabelos compridos até os ombros e displicentemente desalinhados, presos com um arco, possuía um rosto pálido, envelhecido e de aparência bem pouco saudável, que era complementada perfeitamente por sua forma curvada de andar. Apesar de falar num tom de voz baixo, parecia estar imerso em profundo aborrecimento e contrariedade, e que dirigia toda essa carga, tão negativa quando sua expressão a algum assunto que conversava com sua equivocada companheira. Ela, com o rosto a transparecer um indizível cansaço de vida, trazia na mão livre um cigarro.
Passando o ponto de ônibus, mas continuando na mesma calçada, já me encontrava próximo à esquina com a primeiro de março. Veio em minha direção uma moça jovem, em roupas de trabalho. Morena, cabelos bonitos, com movimentos limitados por uma redondice extrema que tornava seu rosto de outra forma bonito, em uma caricatura redonda. Seus pés, em chinelos que provavelmente usava após sair do trabalho, tinham os dedos espalhados e curvos, como porquinhos querendo fugir de um matadouro imaginário, correndo um em cada direção. Tinha um semblante extremamente cansado, e interrompeu o movimento de remada dos braços curtinhos umas duas vezes para tragar o cigarro que fumava.
Chegando à primeiro de março, me surpreendi com a frequência assustadora com a qual cruzava com pessoas como essa dupla que agora cruzava meu caminho. Sempre ali naquele trecho, sempre via muitas pessoas que me causavam estranheza, por serem tão iguais no desespero que partilhavam invariavelmente: parecerem alternativos, sempre de uma maneira quase industrial. O rapaz, claramente gay, vestido de forma irremediavelmente ridícula, tentando de forma heróica manter no rosto um ar de extrema auto-importância, e uma moça vestida de forma igualmente ridícula, mas com cores que berravam de outra forma ao mesmo tempo em que contrastavam com seu ar estudadamente alheio, quase como alguém que ocupa um corpo e respira oxigênio porque não tem nada melhor para fazer. O rapaz puxa dois cigarros de uma embalagem e passa um deles pra moça. Pouco após passar por eles, um dos sinais da rua fecha e vejo meu ônibus parar. O motorista abre a porta quando faço o sinal, e subo imerso em felicidade por ser proibido fumar no ônibus.
Não era minha intenção, mas naquele momento, conseguia apenas sentir um intenso ódio por aqueles tubos idiotas de papel. E de certa forma, uma vontade de ficar distante de todos aqueles candidatos a zumbi que usam toda a força de um simples vício para tentar justificar com milhares de argumentos, a simples fraqueza que os impede de admitir que não conseguem ficar sem aquela pequena porção diária de veneno para ratos que evoluíram do macaco.