A Terra dos Burros

Derrubaram a minha saudade: colocaram catorze prédios no lugar.

Acho que nenhum deles estaria na minha possibilidade arquiteta: uns traços duvidosamente comuns, pouco espaço e muitos andares: sombra posta fora de lugar.

Apenas o incomum não nos é presa fácil, por isso é a minha saudade que ruiu. Tenho identidade única com as incertezas planejadas aqui sem o peso do cotidiano ortodoxo. Tive o imenso aqui, daqui a ali, no centro dava um campinho de futebol. Hoje é apenas sombra. Eu não tenho mais lá.

Devolveram o K à língua. Havia saído? Duvido – as normas não dizem nada! E por falar em Y, o W também está de volta. Gramática é uma coisa, língua é outra. Regrada, olvidada, depende da mão que assina: centro ou periferia?

Pátio ou precipício? Veremos que na minha saudade mora aquilo de todos nós: comemorei alguns gols, chorei por improváveis derrotas. Havia um sorvete de palito – lá o picolé era novidade – com massa de chocolate e que se chamava “Chocolate”. Não havia dúvida nenhuma. Pergunta se colocavam parafina nos ovos de páscoa? Respondo? Às vezes, mas inclusive o disfarce era mais tranquilo, tanto menos sofisticado. Essa era a função do engodo: nunca sofisticar.

Tiraram prazer, inclusive, do engodo.

Alguém está ofendido? O homem cordial está escrito, será sempre cordial enquanto não souber apalpar uma caneta. Um povo sem letra não assina o seu futuro. Por isso as bestas se cercam de leis sem cercamento.

Próprio. Duvida? Dom-Dom, o João, aquele imperador mal talhado que beirava entre o quinto e o sétimo (resolva-se na interpretação: falamos de pecados-mandamentos, de andares de edifício ou sobre dinastias?). Lembra dele? Pois que lhe ofereciam de tudo em troca do todo, assim que ao brasilzão chegou ele sem calças nem frangos. Muitas famílias se apossaram definitivamente do país tro-tropi-cal, cal. Mantidas as aparências, ninguém assumia, até que apenas um ex-professor do científico revelou, aos pulmões decaídos, o passado do bisavô entre os largos cariocas: ofereceu a Dom-Dom, em pessoa e gestos, dez burregos prodígios com a carga em troca de qualquer solo em Niterói. O impera-dor, sedento pelo trabalho dos animais (como havia carga naquela gente-nobre, gente!) ordenou que lhe fossem oferecidas duas praias inteiras com fazendas entrepostas, não em Niterói, mas em Angra dos Reis. O bisavô topou. Foi para Angra viver de criar burregos – tinha certeza que venderia a fazenda ao lado para poder buscar umas doze ou quinze cabeças, macho e fêmea. Nem precisou. Outra ordem do ímper (já íntimo!): todos os que animais de carga possuíssem, de preferência burros e bestas, enviassem os bichos ao bisavô do ex-professor, pois eram dele os mais perfeitos burros já criados, e, sem dúvida, ele seria capaz de realizar o sonho de Dom-Dom: criar o burro e besta ideais! Os que carreguem carga, noite e dia, saibam exibir simpatia, jamais empaquem. Um burro e uma besta que jamais reclamem. Pois bem, reza a lenda que o bisavô viveu até a posse de Vargas. E que, mesmo sendo centenário e mais um pouco, não houve no fazendeiro habilidade para criar o burro ideal. Dom-Dom voltou ao lar. O século virou. Getúlio, contestando as imensas posses, exigiu que as terras fossem ocupadas pelo Estado. Mas, após uma conversa franca, foi convencido pelo ruralista de que as fazendas tinham então um propósito. O presidente Vargas permitiu, mas condicionou aquela posse ao nodal da razão contemporânea: terá prazo para dar frutos. Afinal, a quantidade de burros e bestas já enviados ao resto do país era imensa, logo seria possível o tipo ideal assim que algumas metas fossem impostas. Veio a lei: “cabe ao Senhor..., em troca das Propriedades..., gerar o sujeito de carga ideal para o desenvolvimento de nosso país”. Óbvio: todos os que tinham possibilidades passaram a criar burros e bestas. A ideia era espalhar o animal por todos os cantos, ele trabalharia diuturnamente, completaria todas as esquinas. Acontece que muitos dos novos animais começaram a cruzar com os da fazenda do bisavô do ex-professor. Com medo de a impureza desandar os mais de cem anos de testes e produção (agora massiva) de animais, machos e fêmeas, ficou estabelecida a seguinte lei: nenhum animal de fora da Propriedade... pode copular com os animais originais da mesma...”. As leis eram rigidamente vigiadas àquela época de bronze. Pergunte se cercaram a fazenda. Pergunte se os animais respeitaram a lei. Hoje a fazenda é um loteado de condomínios. Quanto aos burros...

Tá explicado?

Devolveram o K, o W e o Y. Quem se lembra de quando saíram?

Edificaram prédios, e a fome, quem é essa fome? A fome não é culpa da boca.

Fome ou sede: tentem como bem desejarem. O que me apetece é um prédio louco, exatamente difere: delírio e precisão!

A saudade e o gosto de pasto, uma fazenda na beira do mar...

... passado crônico ou agudo: precisavam botar, agora, tanta sombra em volta?