As cidades do bem viver

Nem tudo está perdido neste mundo egoísta e conturbado. Nem todas as cidades são feias, mal cuidadas e abandonadas por aqueles que deveriam amá-las.

Há pouco tempo a reportagem do programa Globo Repórter foi até a Itália para mostrar a existência de, pelo menos, setenta cidades onde a qualidade de vida de seus habitantes é prioridade número um. Elas já são chamadas de "cidades do bem viver" e têm como modelo Levanto - localizada no litoral, a uma hora de Gênova. Lá até o prefeito vai trabalhar de bicicleta.

O fantástico na experiência de Levanto, seguida depois por diversas outras cidades, é que até o final da década de 1980 a economia local girava em torno de uma indústria de armas. A maioria da população trabalhava lá e, ironicamente, seus empregos dependiam da existência de conflitos entre nações.

O fim da chamada Guerra Fria (que polarizava os blocos capitalista - liderado pelos Estados Unidos - e socialista, liderado pela extinta União Soviética) e a queda do muro de Berlim mudaram radicalmente a vida de Levanto, que surgiu enquanto povoado ainda no auge do império romano. A cidade iria falir se a Prefeitura não tivesse agido rapidamente. A solução, incrivelmente simples, estava no resgate do modelo de vida marcado pelas tradições daquela gente, no seu passado, na sua identidade cultural.

O pioneiro nesta transformação radical foi o ex-prefeito Marcello Schiaffino, que contou à reportagem da Globo que o pontapé inicial foi uma carta enviada a cada uma das 2,5 mil famílias de Levanto. Ele dizia aos moradores que a Prefeitura iria ajudar os que tivessem boas ideias para transformar a cidade e vontade de investir.

Não tardou para Schiaffino receber as respostas. "As famílias começaram a transformar as próprias casas em pequenos hoteis, oferecendo cama e café da manhã, e a abrir pequenos negócios. Era importante impedir que a população abandonasse a cidade. Porque turista não gosta só de praia, também quer conhecer o povo com as suas tradições. Cada um fez a sua parte", registrou a matéria do Globo Repórter.

O certo é que em pouco mais de duas décadas os resultados mostram que a aposta da população de Levanto não só foi a mais acertada economicamente como também trouxe ganhos imateriais incalculáveis. Lá, seus cinco mil habitantes renovam diariamente o ideal de uma cidade bonita, humana, autossuficiente e lenta. Aliás, a lentidão (estilo de vida chamado de "città slow" ou "cidade lenta") é hoje um dos mais ambiciosos "produtos" de exportação italiana, que já está contagiando a Europa.

Indo no caminho oposto aos ideais norte-americanos do "times is money" ("tempo é dinheiro") e do "fast food" ("comida rápida"), que tomaram (e ainda tomam) conta de praticamente o mundo todo, o "città slow" tem o mesmo princípio da vida concreta que prevalecia nas pequenas cidades brasileiras até duas ou três décadas atrás (felizmente, sou testemunha ocular de sua existência). A diferença é que o modelo italiano também gera oportunidades para as pessoas a partir daquilo que elas têm e desejam de melhor: prosperidade material para uma vida digna, tempo para se dedicar aos que amam e aos projetos pessoais e alegria cotidiana de se viver numa cidade bonita, agradável e bem cuidada.