Solidário

O homem é solidário.

Do tipo que divide as brigas, dispensando a razão quando há a certeza de não assumir toda a culpa; também é capaz de partilhar um amistoso bocejo, acompanhado de um sorriso preguiçoso - dupla infalível que só reflete nas bocas observadoras. É solidário, e enquanto tal, também reparte a cumplicidade; melhor dizendo, pratica a solidariedade constrangida, quando exerce a mesma função que o seu interlocutor: a de cúmplice.

Quando vira o rosto ou atravessa a rua para fugir ao encontro indesejável de um conhecido; mais: quando percebe ao longe um conhecido e conjectura sobre o iminente encontro, pensando se vão ter de realmente conversar ou somente acenarem, mas súbito vê o conhecido atravessando a rua, ou fingindo atender ao telefone enquanto passa, do lado, na direção contrária; o homem se faz a toa, distraído. Não faz nada; até pensa ser melhor assim – foge-se, de repente, de um enrolado e inesperado colóquio, ou de perguntas sobre família e trabalho, além de um breve exercício de consultoria em previsão do tempo: “e aí, será que chove? Ixe,... talvez. Tá com cara, né?”. Se consensual, a opção de evitar o encontro e ser percebido fazendo tal coisa, estando consciente disso, é um bom exemplo do quão cara-de-pau é o homem. Coisas assim acontecem bastante. Mas elas são exemplo de cumplicidade, de solidariedade.

É o típico fingir que não é comigo, não saber do que se trata. “Finjo que não te vejo, finjas que não me vês”; “não estou sabendo, e você?” Tudo bem. Outro dia a gente conversa; agora ando ocupado, trabalhando bastante, sabe como é... estou pensando em muitas outras coisas enquanto observo que você está cruzando a rua. Aliás, agora estou pensando que provavelmente faria o mesmo. É... faz bastante tempo que não nos falamos; mas bem,... estranho; tenho por ele simpatia, acho-o bem bacana e tal..., mas hoje, realmente, não dá.

É como alcançar a última fileira de bancos do ônibus, depois de quarenta minutos tendo o esperado em pé, com sol diabo, ao meio-dia, doente de fome, garganta seca, úmido salgado – pra não dizer em mau cheiro – enfim... alcançar a última fileira de bancos do ônibus, observar que o 1°, o 3° e o 5° assentos são os únicos ocupados, e... ficar de pé mesmo.

Vejamos: a pessoa quer sentar. Quem está sentado sabe que a pessoa em pé, no mínimo, tende a querer sentar – sem essa de “dou a preferência, sou cavalheiro, respeito os mais velhos, bla bla balela”; porque é lógico: ela vai chupar a cara e morrer de inveja no momento em que um garotinho vier correndo e gritando se sentar no lugar para onde ela está olhando, que é o banco. É paradoxal! Tão perto e tão longe... e essa raiva, o ódio de si mesmo, a vergonha pelo simples pensar ter sido notado,... vai se sentir acuada; provavelmente abandonará o fundão, indo instalar-se quase ao lado do motorista. Pensando nas próximas vezes, registrará em mente o propósito de observar, logo que adentre a condução, o último terço, o pedaço último, o fundão, na busca por algum assento vago. Mas não poderá ser qualquer; terá de ser, pelo menos, um ímpar, além dos dois pares. Assim, poderá sentar-se tranquilamente, fugindo-lhe da ideia a sensação de humilhação que o traumatizara outrora.

Loucura, não?

Mas, voltando, quem está sentado sabe que quem está de pé quer sentar. Percebe que se a pessoa não senta é porque tem vergonha, é tímida, apresenta quadro sintomático de doença infecciosamente contagiosa, ou contagiosamente infecciosa, hemorróida, sei lá... qualquer motivo. Ela compreende a dor, e... é isso aí! A pessoa não senta. Ruboriza, mas continua em pé. Cumplicidade é tudo como você percebe.

Impressiona o fato de que, nessas situações, ainda que os discursos sejam os pessoais – como estes, (ou não generalizáveis) – segue-se basicamente esta linha de raciocínio. É mútuo. É até mesmo bonito, e engraçado, se não irônico. Isso é solidariedade. Este é o homem.

Girardello Filho
Enviado por Girardello Filho em 19/03/2011
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