O Franguinho Ocidental
IMPOLITICAMENTE CORRETO - I
O que é mais enigmático: cair do nada em Pequim e voltar aos tempos de letras que assustam ou oferecer nomes de natureza carnívora ao almoço vegetariano (tipo bife ou almôndega – de soja)?
Havia na faculdade um amigo natureba fundamentalista que dava umas palestras baseadas em imagens de supostos franguinhos na segunda semana de casca quebrada, encaixadinhos nas granjas, alimentados com hormônios capazes de os crescerem para além da adolescência em apenas 72 horas. Oras: por que fiquei, desde então, quase sem comer frango? Caí no fundamentalismo do camarada anarco-eco? E as outras duas décadas em que havia eu comido frango praticamente sempre? Como foi duro desprezá-las da memória! Depois descobri, o hormônio é tão vigiado e faturado pela força pública que se torna inviável ao lucro; hoje quase me esqueço do amigo palestrante toda a vez de franguinho refogado na mesa. Adoro! Mas nunca fui adepto aos hambúrgueres de soja por ele cozidos, embora o aroma fosse apetitoso. O aspecto me contrariava. Na faculdade se falava sobre forma e estrutura, filosofia das estéticas, ontologias e semiótica. Imagine o quanto nos apegávamos a isso tudo naquele momento. Crê no quanto conseguíamos criticar aquele tipo de vegetarianismo? Pense sobre o que contamos nas embalagens...
Enfim, tudo varia conforme o passatempo; gostamos – não gostamos; sabemos – não sabemos. O que importa? Nas letras do analfabeto vemos o traço de Niemeyer, mas o favo da abelha se perfaz com geometria da arquitetura precisa. E quem precisa da abelha se o plano de Niemeyer é quase a crosta terrestre? Nem tudo é tão relativo assim, o poder do observador depende do traço, que repara a crosta, que volta por Niemeyer. Vê o fundamento? Simples como observar a cadeia alimentar, fácil como entender o receio dos liberais, prático como morar pros lados do Pacífico americano do norte. A linha de Niemeyer é mero remedo puro. Outro exemplo? Meio-dia, não há tanto almoço assim nas mesas adjacentes, foi uma década produtiva pros lados de cá, mas uma mesmice na vizinhança. Mesmo assim todos comemoram as novas possibilidades visionárias que os postes da companhia elétrica, às ruas entocadas, os trazem – muito frango na parada: desconsiderando o molho insosso e tostado, adivinhe, contavam-se cento e cinqüenta e sete pratos repletos de farofa transbordando por sobre o resto – muito frango. Frango com molho, ruim que só, feito com muito amor e pouca aptidão. Sabe que quando se tirava a farofa pronta do saquinho e a misturava direto no molho do prato, até que não ficava... Pois bem, apenas não ficava. Só que as bebidas... Por que a Baré não funda uma distribuidora especial para o bairro? Já viu refrigerante que decanta quando estocado nas prateleiras (a água acima, o xarope abaixo)? Nem carece de geladeira, afinal, quem faz questão de refrigerante gelado no verão tropical? Ninguém percebe, porém, que como um ex-comunista praticante, quase apostólico de vanguarda, há que se reparar nas mesas, colos, pratos e mais pratos: ninguém percebe mesmo: não há vegetarianos por estas bandas. Como um atualíssimo comunista prático e de bandeirola, há que se dizer: não há nada pior do que um ex-comunista, praticante ou não. Ele para de desconfiar, ele se esquece das opções de classe, ele prefere andar de BMW – mesmo que isso seja apenas um sonho. Ainda que a vizinhança coloque um pagode. Na hora do pagode, o amigo some. Por fim: desandou conforme o passatempo. Reparou no verbo haver?
Nem tudo é triste – muito, às vezes, é muito mesmo. Mais. Tudo. Às vezes tudo é tudo, e, no entanto, poucas são, às vezes, nada. Um exagero evidentemente, obviamente, notavelmente exagerado. Sacou o óbvio? A gente cresce e tenta ser mais rico que o outro, mas no fundo tudo dá no mesão conjugado ao corredor da vizinhança: a festa, a sobra, a gente. Gente. Hoje é dia de repetições, como um dia já foi dia de renúncias, como outro dia já foi impertinente com as possibilidades, e adiante, noite. Tenho uma saudade enorme de quem fui, do povo da faculdade, dos dias que viravam noite sem cerimônia, da cerveja que vendia na faculdade, do cigarro que vendia na faculdade, das cantinas permissíveis. A China nunca foi de fato comunista, Niemeyer não é um ex-comunista, e a esta palavra já forçaram todos os sentidos. E se o comunismo for BMW para todo mundo? E se, no volante das almas, alguém não quiser andar de BMW, como fica?
Vê como é difícil explicar os dias desse nosso cotidiano inorgânico? Ou por que será que ecologia virou questão de moda urgente?
Decerto, o fundamental antecipa o complexo, pois que então os fundamentalistas – amantes radicais do fundamento mal-praticado – são os mais novos visionários. Nostradamus pra que? Comer por comer, rezar por rezar, amar por amar, pra anunciar que cansamos do complexo todo? E se ficarmos com braços alçados, pedras intifadas, amor, estranho amor, por quem quer comer e rezar e só? Não que a reza faça parte dessa natureza pequena, até porque o fastio da oração nos diminui até tirar a fome, apenas para considerar que braços e pedras que se atiram contra tanques rezam, da mesma forma que fazem de Paris um prato cheio pra palanque. Já reparou como em alguns cantos, a gente de um canto só é considerada quando resmunga do lado de lá? Do mesmo jeito sempre, quando a sombra venera a causa, nossa presença é eloquente, do mesmo jeito, sempre, até cansar, do mesmo jeito, sempre. Simplicitude: simplicitodo. Do mesmo. É um jeito de a gente viver, sempre do mesmo jeito. O momento exato pra morrer de saudade de quem não fomos. Daí se percebe, a mão espalmada recebe mais do que os dedos cerrados. Daí a gente não mais sentencia aqueles que, vez por outra, são os mesmos que não são. Os caras que fundaram a história (nessa maneira de contar), a matemática e o petróleo, fazem luzes nas barbas dos caras imberbes de cá. Daí isso tudo é uma maravilha, inclusive a fabulosa preguiça digital em se ler: parece que o alfabeto virou papo com extraterrestre. Dá na repartição da gente uma angústia burocrática, carimbo redundante, telenovela de “Vale a Pena Ver de Novo”. O ouro da paciência é itinerante, e nele mora esperança, diamante de metal poroso, a tintura posta no mundo – cor dragão-lascivo – é só o mesmo tom que põe a dança como exclusividade da música. Logo a gente se cansa. Antecipar o tempo é provocar. Sejamos o fundamental, no exagero inclusive.
Abri as linhas lá de cima para começar um conto sobre a sensibilidade que nos bateu a todos da cidade. Daí apareceu a imagem de dois renomadíssimos jogadores de futebol apoiando os seus respectivos pesares em cigarros presos aos dedos. Pensei no equilíbrio que buscamos, nas coisas que somos. Pensei só. Mas o teclado quando martelado pelos meus dedos nem se lambuzou com o frango apegado à pele mal lavada, apenas deu aquele sinal de minhas contradições - a eterna pobreza nos olhos. É fundamentalista! Esse conjunto de teclas pretas com letras apagadas que coloca palavras na vontade! Fundamentalismo puro!
Comum a quem vive por aqui: de repente, um analfabeto em chinês que anda pesquisando pela internet sobre alternativas do bom tempero ao vegetarianismo clássico.
Exagero? Caia em Pequim com carne de soja nas mãos para você ver...