Uma Caixinha de Surpresas
Khuloes, África do Sul.
23/05.
Passeamos por uma vila, duas cabeças de leão logo à entrada, nada que repele pela curiosidade. Garantem os guias, esse é o único lugar do mundo que o Google Earth desprezou de seu roteiro vigilante.
Por algum motivo não sou um estrangeiro. Por outro, sou estranho. Estou aqui para conhecer a gente do futebol em 2010.
Três garotinhos reconheceram-me logo por quem eu não era: “Brazil, Brazil!”
“Ronaldinho”? – respondi com sorriso entregue de turista.
Os três não entenderam. Eu desconfiei. “Será que nunca viram TV”?
Decidi que decidir era um ato plenamente hostil sobre quem ali estava para conhecer, contar. Fomos levados ao centro da vila, um templo, de religião distante do Brasil. O clérigo local, um tipo de preparo curioso nos cabelos, ouviu a curiosidade que os meus olhos berravam, trata-se de uma edificação robusta à barro, tronco e pedra, feito a delicadeza da gente feliz que não desgrudava a atenção da camisa amarela que cobria o meu peito.
“Jair?”, perguntou o sacerdote de bata ao colo, tal qual a sua, a me oferecer, interessando-se pela minha quando deu-lha um puxão para ver o número.
“Jair”? - saí dali após um esboço de cerimônia, tudo muito simpático: os anfitriões da visita inesperada, a quase oração, o reconhecimento do Brasil-futebol. Tudo repleto de humano.
E, na intimidade da aproximação, pensei alto demais:
- que coisa, será que pararam no tempo? Jair? Será o Furacão de 70?
“Quem sabe não era o Rosa Pinto...”, disse Jordan, que era um fotógrafo norte-americano do Bronx, enviado pelo jornal latino do qual retirava o suficiente para dobrar a aposentadoria.
Não respondi. Fiquei atônito e pensativo. “Um americano de vasta idade conhecedor de Jair Rosa Pinto? Que surpesa!”. Fomos ao riacho. Todas as refeições são preparadas à beira do riacho, desde a primeira geração da vila. Almoço, jantar ou casamento.
Um furor! Todos me reconheceram. A camisa canário-berrante é mesmo um berço!
“Dada, Dada, Dada”… e no riacho eu virei Dada. Referência a Dadá Maravilha? Pelo menos foi o que li no sobrolho de sentença preso à cara de Jordan.
Será que essa gente parou na década de 70? Não vi sequer aparelhos de TV, rádio, nada, a minha aflição atrás de um computador parecia ter encontrado salva de canhões em colaboração: ninguém ali usa de tecnologia! Fiquei ainda mais angustiado.
Um jornalista que vendeu o seu computador para ir à África fazer cobertura exige o moderno de quem? Com qual moral?
- Ronaldinho! Ronaldinho – eu gritava sem eco – Ronaldinho!
Os ouvidos imunes, ninguém se manifestou com devoção. Apenas sorriram, quanto muito.
As casas são de barro. O riacho é a fonte da vida da gente na vila que parece um feudo de argila envolvendo o obtuso templo de quase-concreto.
Fomos jantar no lar de uma família muito simpática, tradicional responsável pelo mecenatismo local. Hóspedes de honra, então além das raízes com cara de nabo e gosto de beterraba, uma paca assada. Cuias e talheres de madeira organizados com aspecto de presente de casamento, um batuque delicioso vindo de trás do casebre, crianças curiosas visitando ao leque da porta.
O mais jovem dos guris arriscou atravessar a fronteira da porta e sentou-se ao pé de mim. Criança não participa de jantares. Pendurou a mão na borda da camisa amarela e perguntou: “Almir?”
O pai, antes de expulsar o garotinho, sorriu. “Almir? Não, essa é do Pantera!”.
O jantar terminou com a fartura nos olhos e sorrisos, e eu indignado, “falavam de Pantera, o Ademir? E que Almir seria?”.
Jordan, de soslaio ao meu murmuro, implicou, “Pernambuquinho?”.
Fomos dormir no templo, é a pousada dos forasteiros, e pela janela de madeira maciça deu para ouvir os sussurros vindos de fora: “Ziza?… Não, Leônidas! Que Leônidas o quê? É Djalma!”.
Dormi ressabiado.
Pela manhã resolvemos partir, a vila preparou despedida, flores e comes, crianças do lado de fora.
Tanagis, o mestre-ancião daquela gente, pleno sobre o meu ombro, explicava que as crianças dali, todas, tinham nomes brasileiros, era Arthur, Nélio, Manoel, Edson… tudo em homenagem ao futebol.
“Edson? Pelé, no caso, certo?” – mostrei intimidade e satisfação.
“Não, Edson mesmo”.
Ronaldo, Ronaldinho, Kaká, Robinho… clamei por todos, e as respostas eram olhares vazios.
Antes de rumar pela estrada até o ponto de ônibus, ouvi da esposa de Tanagis, Odellie, a seguinte sentença:
- o seu país foi artista até 1970. Daí pra frente, virou Europa. perdeu a graça.
Não é que todos queriam saber de quem era a camisa que eu vestia?
É do Brasil. Não tem data.
Cheguei pra contar e nada além.
O futebol é mesmo uma caixinha de surpresas.
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#Will do Brasil é jornalista e esteve na África do Sul para a cobertura da Copa 2010.