UM OLHAR IRRESISTÍVEL
Percebi que me observava fixamente com olhos de penúria. Seu olhar pedinte me buscava na diagonal superior, em observação lateral, tímida, daquelas que penetram mais fundo em nosso altruísmo contido.
Fingi não ter notado, e permaneci inexorável em meu desígnio inicial. Mas aqueles olhos de pedinte me oneravam de um trabalho tranquilo, pois a disposição gasta para manter meus pensamentos distraídos daquele olhar, me impediam, obviamente, a concentração.
Por fim desisti, e, orgulhoso, o observador levantou o pescoço em minha direção, tentando enxergar agora meus pensamentos e próximas ações. Mas um vidente que tem o poder de persuadir à própria previsão não é, senão, um charlatão. O pensamento, tomando forma, saiu de meus lábios como uma bolha de sabão: "Trapaceiro!", e subiu e arrebentou leve no ar.
Nos encaramos como vilão e herói, e depois, como herói e vilão e, então, como grandes amigos. A grande afinidade tornava nossa comunicação poderosa, apesar de incompreensível e banal ao público de nosso circo particular. Eu levantei de leve meu pescoço, e ele repetiu o movimento na mesma intensidade. Tornei a abaixá-la muito lentamente, e ele acompanhou. Mas seus olhos permaneciam conectados ao meu pelo desejo implícito. Um olhar irresistível.
Esperei. Afinal, não iria render-me puerilmente ao desejo debochado do silêncio. Aguardei, devolvendo-o o olhar firme e impassível, irritando-o, alimentando seu ânimo endiabrado. E, então, ele levantou-se. Neste momento eu soube que iria ganhar a disputa a qual fora intimado. A estátua de mármore bege que eu interpretava o incomodava furiosamente, e não tendo mais escolha ele finalmente cedeu.
"Au, Au, Au!"
Sorri vitorioso. Sabia examente o que significava, não pelo verbete, mas pela velocidade das palavras, pela intesidade do som e pelo empuxo do cordão invisível que nos unia desde o primeiro "Au!" de sua vida, nenhum desses, infelizmente, possível de descrição textual.
Compreendido seus termos, livrei-me de seus olhos inquisidores e me dirigi em direção ao seu potinho. Preenchi-o com água gelada (como requisitado pelo próprio), e o repousei tranquilamente ao lado da tigela com ração canina. Sedento, nem teve tempo de me agradecer, como às vezes faz me lambendo os pés. Não que eu esperasse isso, pois a verdadeira satisfação era perceber que nossa comunicação manti-se afinada e, porque não dizer, insuperável.
Enchi também um copo de água, apenas para acompanhá-lo, pois a cada gole eu saciava, não a sede, mas o desejo de vê-lo saciado. Enxugou tudo em segundos, e veio, enfim, lamber-me o pé, tornando a olhar fixa e docemente para mim mais uma vez. Silenciei, voltando a interpretar a estátua, até que ele se rendesse novamente, e: "Au, Au!".
E isso eu já sabia o que significava também.
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Em homenagem ao meu cão e companheiro inseparável de fins-de-semana, Shake.