Tragédia e amor incondicional
Toda grande tragédia, como a que atingiu a região serrana do Rio de Janeiro, revela muitas histórias de dor, tristeza, heroísmo e solidariedade. A cada dia surgem novas reportagens sobre pessoas que ficaram várias horas debaixo de escombros e foram resgatadas com vida, como verdadeiros milagres. A do pai que manteve vivo o filho pequeno, dando em sua boca a própria saliva, é uma das mais comoventes.
Outra, publicada em vários sites na última segunda-feira, trouxe a história tocante do amor incondicional de um cachorro que permaneceu várias horas ao lado do túmulo de sua dona, uma das vítimas de Teresópolis. Segundo o relato de membros da ONG Estimação, que passaram a cuidar do animal, ele vivia com Cristina Maria Cesario Santana e mais três pessoas, que também morreram soterradas. Segundo as reportagens, Caramelo (como é chamado o cachorro) se salvou e ajudou os membros do resgate a localizarem os corpos de sua dona e dos familiares dela.
Essa notícia me remeteu a uma história ocorrida em minha cidade natal (Boa Nova-BA) na década de 1980. Morava na zona rural um adolescente de 17 anos chamado Ismael. O sítio humilde, onde ele residia com seus pais e irmãos, abrigava, além da criação doméstica de galinhas e porcos e dos gatos e cachorros que perambulavam pelo terreiro, uma vaca leiteira e um boi usado para puxar um arado rústico, responsável pelo preparo da pequena lavoura de milho e feijão.
Por lidar mais diretamente com a agricultura, o jovem mantinha com o boi uma aproximação que os demais familiares não partilhavam. Era cena comum vê-lo dando comida ao animal na palma da mão ou simplesmente conversando com ele como se realmente se entendessem.
As poucas idas ao centro da cidade aconteciam aos sábados, quando levava o que colhia para comercializar na feira local. De pouca conversa e de uma timidez roceira, ele quase nunca era visto em bares ou em qualquer outro evento onde se pudesse perceber seu comportamento. Foi num dia qualquer da semana que um dos poucos amigos da vizinhança o procurou para contar que havia brigado com o pai e que, por isso, queria ir embora de casa. Estava decidido ir para São Paulo e tentava convencer o amigo a seguir junto com ele, como já tinham vislumbrado outras vezes, sonhando com uma vida melhor no Sudeste.
Ismael, um tanto relutante, disse não ter coragem de abandonar a família e fugir de casa. Ele não podia negar, porém, que São Paulo era um sonho que alimentava há algum tempo e que aquela era uma oportunidade única de realizá-lo. Com a viagem marcada para a manhã do dia seguinte, na vizinha cidade de Poções (de onde o ônibus sairia), o pacato rapaz não teve tempo de pensar muito e decidiu viver aquela que seria talvez a primeira de muitas aventuras.
Os dois saíram cedo levando em duas mochilas velhas pouco mais do que a roupa do corpo. A fuga foi descoberta horas depois dos pais de Ismael terem sabido da briga do seu amigo com a família dele. Na cidade obtiveram a informação de que ambos foram vistos partindo na linha diária para o município vizinho. Desesperado, o sitiante conseguiu fretar um carro e foi sozinho até a rodoviária de Poções na esperança de ainda encontrar o filho e persuadi-lo a voltar. Assim aconteceu: lá estava ele, em companhia do amigo, à espera da hora da partida. Surpreendido e convencido pelo pai a voltar para casa, o rapaz parecia feliz por ter sido tirado de uma aventura que não era mesmo sua.
No caminho de volta o carro em que estavam se envolveu num acidente com uma carreta. Nenhum dos ocupantes conseguiu escapar com vida. Em pouco tempo a notícia já havia se espalhado pela cidade, causando uma comoção geral. O duplo velório no sítio trouxe para a vizinhança um silêncio incomum e uma tristeza contagiante.
Nessa tragédia não foi apenas o coração de esposa e mãe o único atingido por um misto de sentimentos que, num momento desses, se externam simultaneamente em amor, dor, saudade e tristeza. A população inteira custou a acreditar no que soube ou viu com os próprios olhos: um boi havia quebrado a cerca de um sítio, percorrido mais de um quilômetro para se plantar à porta do cemitério, onde acabava de ser sepultado aquele que certamente foi bem mais do que seu dono.