O Silêncio dos Não Inocentes

Meu silêncio, é a proteção que tenho diante de uma sociedade, que condena antes mesmo de julgar. Caminho entre os habitantes, como se fosse um deles, mas diferencio pelo que porto, me tornei hospedeiro, se souberem a respeito do que me tornei, irei pagar pela revelação. Temos uma vida inteira pela frente e num dia, observamos desabar a realidade sobre nossa cabeça, o futuro se torna ainda mais sombrio, apesar de em geral ser incerto, o meu passa a ser de uma incerteza esmagadora.

Somos o “mocinho” e não damos conta quando inverte-se o papel na trama, assumindo características de “vilão”. Quando fui contaminado, pensei em gritar, mas na hora veio a consciência de que gritar é auto-condenação, o “não falar” torna-se a principal proteção, assim como medidas que asseguram o sigilo. Um noite de prazer seria suficiente para que fosse atacado, pois a ameaça está a espreita, mas no meu caso foi algo menos romanesco.

Uma seringa compartilhada, por um pequeno prazer que o vício proporciona, depois aquele exame de rotina feito de forma desapegada, mas o laudo quem me pegou. As recomendações caem por terra, me senti naqueles clássicos filmes de zumbis, onde são óbvias as dicas para não ser contaminado, mas a maioria dos personagens ignora o perigo e acaba se dando mal. Faço parte dos imprudentes, não tenho a aparência monstruosa, mas posso vir a ter, além do coquetel de drogas a que me submeto.

Meu sangue também contamina, sou portador de um “mal” que pode ser transmitido, sou ainda mais perigoso do que monstros de ficção, olhando para meu rosto não identificam que sou um “deles”. Tenho o disfarce da normalidade, basta ser sedutor e logo terei outros juntando-se a mim. Só que diferente dos mortos-vivos - embora eu muitas vezes me considere dessa forma -, eu tenho consciência, tenho noção do dano que causaria ao infligir isso a outro.

Sempre desejamos que as coisas sejam diferentes, ou que ocorram conosco de forma diferenciada, mas acabamos tragados pelo senso comum, parece a condição de ser gregário, um arrastar-se para os tormentos de ordem social. Mantenho um individualismo, que resiste com valores construídos, por isso optei pelo isolamento, mesmo estando cercado de companhia, me tornando um deserto num rio de gente.

Todos sabemos que vamos morrer, mas ter a certeza através de uma contaminação é angustiante, parecemos ao contrário dos “cadáveres adiados” do Pessoa, cadávares próximos, a ponto de a qualquer momento poder cadaverizar o outro, pelo simples fato de ele tomar conhecimento de nosso estado. Aquele olhar de piedade, misturado com o medo de ser contaminado, sentimentos de acolhimento e repulsa, além da constatação da fragilidade orgânica, justamente confrontando a nossa crença de estruturação perfeita, por acreditar na regência de uma natureza racionalizante.

Continuo fazendo parte do grupo social, mas me elitizo nessa deformidade, meu grupo é menor, mas tenta resistir e multiplicar, só que ao contrário do evolucionismo darwinista, temos uma necessidade auto-destrutiva. Parece um sentido de extinção, algo nato, em certos casos inato, pois já nascemos condenados. Por mais que tentem me desumanizar, ainda tenho as características humanísticas, por isso sofro, talvez brevemente deixe de ser morto-vivo, tornando-me apenas morto, vivo na memória dos que resgatam a importância desse indivíduo, apreendido a partir de um sujeito-corpo.