João

Era uma segunda-feira, daquelas bem habituais, quando acordamos com ar de cansaço, de quem acostumou dormir até mais tarde no final de semana. Aquele café da manhã apressado, de quem logo estará retomando a labuta cotidiana. No sábado anterior, havia assistido dois filmes que alugara, no domingo assistiu os outros dois, sendo que os quatros juntos não dariam a empolgação de um só filme bom de verdade.

Saiu para o trabalho carregando a sacola plástica com aqueles filmes locados, ainda não aderindo a onda de consciência ecológica, em que se procura evitar as famigeradas sacolinhas, que tem excesso de quantidade e fazem-se demoradas na decomposição. Muito cedo, a locadora ainda estava fechada, chegando na empresa onde exercia seu ofício, relegando a sacolinha a um canto do almoxarifado, reservado aos pertences de funcionários.

Encerrado o expediente da manhã, no horário reservado ao almoço, fez aquela refeição rápida de todo dia, que costuma ter o intuito de prolongar o tempo de descanso, hoje também servira para aproveitar o intervalo e devolver os filmes. Chegando na locadora, a atendente conferiu os filmes, depois verificando existir um débito.

- Como débito!?!? Acertei tudo no mesmo dia em que loquei os filmes!!

- Aqui consta em aberto, senhor.

Nisso, as pessoas formavam fila atrás daquele impasse, já impacientes diante do contratempo, alguns pensando que a locadora era desorganizada, outros que era alguma tática daquele tipo de comércio, por já haverem passado por algo parecido, ainda existia um terceiro grupo, imaginando ser malandragem do cliente.

- Ok! Vou acertar o débito, tenho dinheiro para fazer isso. Amanhã retornarei com a nota e comprovarei ter pagado duas vezes.

- Como o senhor desejar.

Uma tarde no emprego, com a preocupação de resolver aquela pendência, além da ira por passar por tal constrangimento, a noite foi mal dormida. No outro dia, naquele outro intervalo para o almoço, estava em frente a mesma atendente, que pediu desculpas pelo equívoco ocorrido, pois constantara que o pagamento primeiro havia mesmo sido realizado no ato da locação. Mesmo se a funcionária insistisse, estava com a nota em mãos para exposição e recuperação da sua dignidade.

Essas coisas se dão de forma constrangedora, no dia que foi acusado de débito, a locadora estava lotada, agora que foi inocentado, um único cliente de testemunha e nem era um daqueles que presenciaram sua humilhação de outrora.

- O senhor agora terá R$ 20,00 de crédito, equivalente ao valor a mais que pagou.

- Não desejo crédito, quero meu dinheiro de volta!

- Infelizmente temos ordens para que apenas o proprietário restitua valores.

- Então recebe qualquer um, mas paga-se apenas o proprietário?

- É a norma, senhor.

- Que horas o “chefe” estará aqui?

- A partir das 14:00.

- Ok!

Sai bufando da locadora, mais uma tarde estressada de trabalho, mais uma noite mal dormida. Seu horário de almoço era de 12:00 às 13:00, trocou o horário com outro funcionário, após explicar o motivo. Chegou na locadora 14:05, aguardou o proprietário até 14:25, que entrou e passou por ele despercebido, subindo até o 2º andar da locadora. A atendente disse por um telefone de ramal que o cliente estava aguardando, logo em seguida conduzindo o solicitante até a sala do “chefe”.

- Boa tarde!

- Boa tarde!

- Tudo bem com o senhor? Me chamo João, a atendente já me colocou a par do caso. Mas criei as normas da locadora para evitar problemas, confiar em funcionário é fogo, sabe como é.

O cliente olhava entediado, ao mesmo tempo irritado, além da lenga-lenga, também era funcionário, sabia que era hábito de patrão empurrar aos empregado qualquer problema e tentar justificar suas incompetências administrativas, atribuindo a outros suas próprias responsabilidades.

- O senhor terá R$ 20,00 de crédito.

- Não quero crédito, já disse isso, quero meu dinheiro de volta.

- Mas pense nas vantagens, pode vir adquirir filmes sem dinheiro.

- Nem sei se desejo locar filmes de novo aqui, quero meu dinheiro.

O tal João fez cara de chateação, ligou para a funcionária e pediu para trazer o valor. Quando ela entregou, os sofridos R$ 20,00, o “chefe” questionou se não seriam R$ 15,00, fazendo o cliente dizer que era um absurdo, a funcionária confirmando o valor anterior, fazendo o pagamento devido.

Foi quando o João se levantou para pedir suas cordiais desculpas, o cliente reparou que ele não tinha um dos braços, o esquerdo, justo aquele, que possuía a mão que fora tão difamada pela religiosidade destra. Logo, tudo estava explicado, a partir dali nem precisaria mais receber o valor de sua locação, compreendeu porque tantos problemas causados e o proprietário ter feito tanto para reter sua pecúnia, com aquele ar o tempo todo de inocência, que na verdade era dissimulação de pessoa sonsa.

O nome do sujeito era João, como tantos outros batizados com nome de inspiração bíblica, mas ele não tinha seu braço esquerdo, era fielmente o “João-Sem-Braço”, tentando engabelar os clientes com aquela conversa manhosa. Saindo sorrindo da locadora, com a concretização do que antes imaginara ser uma lenda da tradição oral, agora vivenciada de forma intensa, além dos R$ 20,00 no bolso, nem se importou em ter que repor as horas a mais em que ficara resolvendo o impasse. Havia chegado 15:30 no trabalho, ainda sem almoçar, mas a satisfação foi o melhor alimento.