O Calor Não Gosta de Mim.
Não faz calor. O que sinto é algo que ultrapassa a definição de calor. O apocalipse existe, e se parece com um forno. Os poucos sobreviventes correm de um lado para o outro em busca de um ar-condicionado ou, na pior das hipóteses, de uma pouco eficiente sombra. É um período de suor, de gente estranha, de correrias sem sentido e sorvetes derretendo tristemente antes de serem consumidos. Às vezes eu observo as montanhas lá na frente, circundando pacientemente a cidade desde sempre, cobertas com aquele verde. Sinto vontade de estar no meio daquele mato, enfiado numa cachoeira qualquer, desfrutando da água gelada até acabar essa estação inclemente. Confesso que o verde das montanhas não me parece tão belo quanto o da minha terra, porque o vejo através daquela névoa amarelenta da poluição, que sobe centenas de metros acima do chão, fazendo um triste degradê com o azul do céu.
Meu organismo de ser das montanhas não comporta tanta agressividade de temperatura. Não aceita esse abafamento sórdido e tampouco se acostuma ao calor que profana até as noites. As noites são regiões em que desde sempre, instalou-se em meu imaginário e em meu coração um friozinho ameno, um agradável incentivo à procura por um aconchego, seja ele qual for.
E no calor inclemente de um verão que mal é chegado, percebo que há muitas conexões simbólicas a serem feitas. É um calor que emperra pessoas e instituições. É um calor que incentiva a fuga, a irresponsabilidade e a falta de compromisso. É um calor que penetra no DNA de toda uma espécie. Um calor que incita ao engano e à trapaça. Um calor que chega cedo, come muito, causa prejuízos, vai embora tarde e sai sem pagar.
Mas não é justo dizer que o calor é o culpado por tudo. Apenas me compadeço daqueles cuja vida não pode parar por causa da simples chegada do calor. Tenho mais reservas com aqueles que engolem com facilidade o marketing e a venda de conceitos de prazer e diversão que a chegada do verão oferece. A avidez pelo não-trabalho, pela não-produção, pelo ócio eterno. Sempre me surpreendi ao ver como se reclamava da chuva, do frio e de dias cinzentos, ansiando por um clima que só pode ser aproveitado adequadamente por quem não tem obrigações e responsabilidades. Jamais achei que o verão não devesse existir. Tenho ótimas lembranças de ótimos verões.
Não me dou bem organicamente com o calor, mas diferente dos seres estranhos que povoam este planeta, consigo ver a mesma estranha beleza na água de uma praia tranqüila brilhando gentilmente no sol do fim da tarde e no descer suave de uma névoa matinal sobre as montanhas, num dia de inverno na serra. Consigo amar igualmente a beleza dos vestidos e a soltura dos corpos das moças no verão, e o indescritível prazer de se aconchegar procurando o calor num dia de inverno, onde o brilho de um olhar e o toque de um nariz gelado podem ser o prenúncio de inúmeros bons momentos. Gosto do vento, gosto do sol, gosto da chuva, gosto do azul, gosto do cinza sobre o verde. Gostaria até do calor, mas infelizmente, o calor não gosta de mim.