Ao pé da letra...

Na Vila dos Marrecos, todos sabiam que o carteiro Genésio era diferente. Havia de se ter muito cuidado no o que se dizia pra ele ou perto dele, pois o carteiro Genésio tinha um pequeno hábito que lhe causou muitos transtornos ao longo da vida: Levava tudo ao pé da letra.

Quando tinha cinco anos de idade, brigou com o primo Samuel por causa de meia dúzia de bolinhas de gude. O primo Samuel, que era mais genioso e muito mais forte que ele, recolheu as bolinhas e guardou-as nos bolsos do calção. Virou-se e berrou:

_Qué sabê, primu Gernésu, num queru mais brincá. Vô

imbora cum minhas bolinha.

Genésio retrucou:

_Suas bolinha uma ova, qui metadi é minha.

Primo Samuel cresceu:

_Num intregu. Agora é minha. Qué bolinha? Intão vai

lambê sabão!

O resultado foi uma lavagem estomacal e dois dias com a boca espumando. E esse hábito o acompanhou por toda a vida. Não o de lamber sabão, ao contrário, depois do episódio das bolinhas de gude (e de sabão), ficou traumatizado com o corriqueiro produto de limpeza, passando a lavar a mão só com sabonete de alfazema (anos mais tarde, adotou o álcool gel). O hábito que carregou até o túmulo, foi o de tomar tudo ao pé da letra. Se acontecesse um concurso para eleger o Mais Fiel Interlocutor, não poderia concorrer, pois decerto que seria considerado hors concours.

Mas seu estranho hábito tinha lá suas vantagens. Quando prestou o concurso dos correios, passou em primeiro lugar, com cem por cento de aproveitamento, pois dado seu hábito de levar tudo ao pé da letra, acabava por ser muito meticuloso em tudo que fazia, daí que ninguém nunca estudou com tanto afinco, e nunca se valeu tanto das didáticas e das literaturas como Genésio, que não admitia prosseguir em empresa alguma enquanto tudo não estivesse ‘bem esclarecidinho’. Também era considerado o melhor carteiro da cidade, quiçá do estado, do país e até do mundo, pois como o leitor já deve adivinhar, jamais uma carta ficou sem chegar ao seu destino, além de que, todos os números ou nomes de destinatários ou ruas eram corrigidos antecipadamente pelo exemplar funcionário Genésio, e ele os corrigia de memória, porque sabia de cor todos os endereços de Vila dos marrecos, completos. Em tempo algum uma entrega atrasou ou uma assinatura deixou de ser colhida e devidamente atestada verídica pelo carteiro Genésio, mediante Carteira de Identidade sim, porque afinal, dizia, ‘podia até conhecer o destinatário há muitos anos, mas isso não implicava no fato de ele ter que quebrar normas e deixar de pedir o devido documento’. Quanto à pontualidade e frequência, obviamente que não preciso discorrer, para não gastar o precioso tempo, nem meu e nem do leitor.

Mas no frigir dos ovos, seu costume esquisito trouxe-lhe mais transtornos que tranquilidade. Esse hábito de tomar meticulosamente tudo ao pé da letra, fê-lo perder muitos amigos. Certa vez, já rapazinho de seus dezoito anos, foi a uma festa de casamento com a família. Tão logo adentrava o salão de festas, a anfitriã (a mãe da noiva é claro, que nenhuma noiva consegue ser anfitriã em seu próprio casamento se a mãe estiver viva), veio efusivamente dar boas vindas e foi logo dando uma esfaqueada na língua portuguesa:

_Que bom que vocês vieram! Fiquem à vontade! Façam-me a gentileza de procurar um bom lugar e sentem-se ‘na’ mesa.

Genésio ouviu e obedeceu. Quando os noivos chegaram, ele estava tranquilamente fumando seu cigarrinho, sentado entre o bolo e uma pirâmide de taças, pra grande embaraço de sua mãe, que a essa altura deixou a festa sem comer sequer um mísero bombom, sem contar a adição de mais uma, no seu já extenso rol de amizades enfraquecidas. E se o incorrigível costume do carteiro Genésio chegava a enfraquecer as amizades da mãe, imagine as suas então! Ao longo dos anos, foi perdendo amigos. Não que se tornassem seus inimigos, mas afastavam-se, seja por um mal entendido fonético ou por algum embaraço causado, enfim, o carteiro Genésio foi se tornando uma pessoa solitária, não de todo, é verdade, que ainda tinha seus familiares, que a despeito de sua postura, que com o tempo foi se tornando cada vez mais ensimesmada, eram sua família, e amavam-no, bem como dizia sua mãe: ‘Ele é esquisito sim, e daí? Mas é meu filho, é sangue do meu sangue. E quem é que tem alguma coisa contra?’ Também não ficou totalmente desprovido de amigos, tinha ainda o Seu Tatá, que por muitos anos pendurara a sacolinha de pão em sua janela às seis horas da manhã.

Seu Tatá, agora aposentado, era um grande amigo da família, e conhecia o carteiro Genésio desde muito pequeno ainda, e como fosse homem simples, mas dado a devaneios poéticos e inserções entusiasmadas no mundo das letras, compreendia, por assim dizer, melhor as agruras e estranhezas da alma humana. Todos os sábados, Genésio o visitava e passavam horas jogando xadrez, quase sempre num silêncio sepulcral, a não ser quando Seu Tatá resolvia comprar uma garrafa de vinho Casal dos Velhos (segundo ele o melhor do mundo!) e se entregava a fartas goladas, cálice atrás de cálice. Genésio não bebia, mas gostava quando Seu Tatá se encharcava no vinho, pois ele ficava mais falastrão e contava histórias de seu tempo, todas muito picantes e extremamente divertidas. Um dia, seu Tatá extrapolou nas goladas e ultrapassou os limites das fogosas histórias da juventude. Acabou por contar ao carteiro um segredo que guardava já há longo tempo, e que nunca antes havia compartilhado com alguém. Embora o teor do segredo fosse bem ‘cabeludo’, o carteiro manteve-se impassível ante a confissão, não esboçando o menor sinal de espanto ou embaraço. Foi Seu Tatá quem se espantou:

_Mais ocê pareci mês uma estáuta di gelo, hein

Genéso! Tô eu aqui, bebimzim, ti contanu u segredo

da minha vida, e ocê aí, cum essa cara di cachorru

qui peidô na igreja! Mais óia lá hein, Genéso, num

vai contá prá ninguém, hein?

O carteiro Genésio calmamente garantiu ao amigo:

_Fica tranquilo Seu Tatá, não vou contar prá

ninguém.

Uma semana depois, Seu Tatá descobriu, assim quase por acaso, que metade da vila já conhecia sua confidência, até então, tão secretamente guardada. Ficou furioso:

_Mais u danadu du Genéso deu Ca língua nus dente.

Mais num podi sê uma coisa dessa, mia Virge Maria!

Calçou as botinas, passou brilhantina nos cabelos, e foi até à agência dos correios, para saber do carteiro o que estava ocorrendo. Genésio não se mostrou constrangido, o que não assustou Seu Tatá, afinal, ninguém nunca sabia mesmo o que ele sentia, pois parecia a própria Esfinge quando se tratava de demonstrar sentimentos; simplesmente comunicou a Seu Tatá que só tinha contado prá sua irmã. Seu Tatá, que já começava a suar de nervoso, passou o lenço na testa, tentou se acalmar e perguntou com a voz mais tranquila que conseguiu:

_Mais pruquê qui ocê conto prá ela, Genésu?

Genésio respondeu impassível:

_Ora, por que ela perguntou.

_Mais ocê num prometeu qui num ia contá prá

ninguém.

Genésio olhou-o sem nenhuma expressão e disse,

categórico:

_Exatamente, Seu Tatá. E não descumpri minha

promessa.

Seu Tatá estrilou:

_Num discrumpiu comu, Genéso, si agora todu mundu

já sabi? I num foi ocê qui contô prá sua irmã? Eu ti

pidi prá num contá prá ninguém.

Genésio olhou-o por um instante e concluiu:

_Pois então. O senhor me pediu prá não contar prá

ninguém, e eu realmente não contei prá ninguém; eu

contei prá alguém.

E foi assim que o carteiro Genésio, o homem que levava tudo ao pé da letra, perdeu o único amigo que tinha, e se tornou de vez, só e feliz, entregando cartas na Vila dos Marrecos.

Aleki Zalex
Enviado por Aleki Zalex em 11/12/2010
Reeditado em 11/12/2010
Código do texto: T2665329
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