Tartaruga ninja

Como está calor aqui dentro, abafado, apertado. Queria sair só um pouquinho e procurar as ondas do mar, sentir um pouco do frio matinal da água salgada. Mas se eu sair pode ser que aconteça alguma coisa de ruim... assim como aconteceu das outras vezes.

Ainda me lembro das outras tentativas de deixar meu casco para trás. É teimosia, eu sei, mas é que caminhar com ele às costas é muito desgastante. É pesado demais. A primeira vez que saí, lembro-me de ser pisoteada por tanta gente que não pude contar. Era um vai e vem e ninguém me percebia ali, pequena, querendo ser notada, acolhida. Voltei para o casco e lambi as feridas. Auto-cura.

Fiquei ali muito tempo para conseguir estancar o sangue, fechar os cortes, ficar só com as cicatrizes. Umas maiores, outras menores, mas todas doloridas pela indiferença. Aí me pus a olhar curiosa, ali de dentro do casco, enterrada na areia, para tudo que acontecia lá fora. As pessoas passando, o sol e a lua, o tão desejado mar. O que será que há lá dentro daquela imensidão azul? Será que têm outras de mim vivendo por lá? Tomara que sim. Aqui eu sou tão só.

Percebi que havia horários em que a multidão diminuía, quase sempre à luz da lua. Pensei que pudesse correr escondida, ganhar o tapete azul e torná-lo meu. Boba desmedida. O fiz em uma noite quente. Fui correndo bem depressa, cambaleante, desnorteada. Quando estava quase chegando, fiquei presa a uma rede de pesca. DESESPERADOR. Tentava, enlouquecida, livrar-me daqueles nós, daquele fio machucando minha pele, mas quanto mais eu tentava sair, mais ficava presa, sem ar, pensando que não ia resistir, que logo amanheceria e alguém iria ferir-me de forma fatal, sem que eu pudesse me recuperar. Tive vontade de chorar. Adiantaria? Tentei falar com a rede, ver se, com um pouco de tato, ela me deixaria seguir meu caminho. Mas não. Nenhuma resposta. Chorei, ficando ainda mais tola.

Chorei tanto que acho que ela teve pena de mim. Soltou-me e pude voltar para meu casco bem depressa. Lá dentro, continuei chorando até adormecer. Devo ter dormido uns dois dias e, quando acordei, os cortes, cobertos de areia, ardiam e incomodavam de forma plena. Lambi uma por uma, novamente, para recompor-me o ânimo ou a sanidade.

O tempo passou. Depois, um desavisado passou por mim e percebeu minha presença. De vez em quando vinha, conversava, alimentava-me, acarinhava-me, mas nada de muito emocionante. Tinha alguma coisa nele que sugeria o desencontro. Alguma coisa dizia que estaríamos melhor um longe do outro. Por isso, não tive coragem de pedir ajuda para chegar ao mar. Pensei nisso algumas vezes, mas não, definitivamente não poderia me ajudar. Sentava-se ali e não percebia meus sinais de apelo, não reparava minha inquietação, estava sempre distraído. Chegou um momento em que me senti sufocada. Aí, quando um dia voltou, não saí do casco. Fiquei ali espremida e quietinha, sem dar resposta alguma, só para que ele se cansasse e fosse embora. Foi o que aconteceu. Pensei que fosse ficar mais solitária ainda, já que tinha degustado de companhia. Mas não foi bem isso que aconteceu. Resolvi-me muito bem sozinha, sem sentir falta, sem mergulhar na saudade.

Às vezes me lembrava das tentativas anteriores e aí sim sentia saudade. Mas não dos fracassos evidentes. É que a sensação que eu tinha enquanto corria para o infinito era tão boa. Quase podia comer a liberdade que se apresentava para mim. Tive saudade das sensações. Pena que já estava ferida demais para correr o risco novamente.

Aí desisti. E já estava bem tranquila com a minha condição quando a maré subiu. Cada vez que a água vinha, eu ficava mais feliz e esperançosa. Talvez desse certo dessa vez, talvez sentisse o gosto do mar, talvez me refrescasse com a água gelada. Talvez.

Nesse momento, surgiu um arco-íris no céu. Veio de uma vez, sem pedir licença, e dividiu minha atenção. Meu coração se sentia em paz quando olhava para o mar, mas não podia deixar de sentir admiração pelas cores, pela forma do arco-íris. Fiquei dividida e ainda esquecida na areia. Eu sabia que o arco-íris passaria. Uma hora iria embora do céu e sei que aceitaria muito bem que o fizesse. Enquanto estive com os olhos cheios da sua presença, fiquei contente, ainda que esperando pelo vacilo da onda mais próxima.

Estava feliz. Vi o arco-íris desbotar rapidamente e aquilo não me fez mal. Ele precisava ser admirado e eu precisava de cor em minha vida gris. Ajuda mútua. Então olhei para o mar com maior atenção e... a maré baixou. Tão depressa, para tão longe, que não pude nem me despedir ou perguntar se voltaria. Nenhuma palavra. E eu continuei ali, parada, perplexa, enterrada na areia.

Estou enterrada em um buraco fundo na areia desta praia chamada vida, e ele não permite meus olhos se deleitarem do desejado. Não o terei. Pelo menos não até agora. Estou em um buraco fundo na areia, de onde meus sonhos, agora adormecidos, podem me deixar em paz.

Lu Carvalho
Enviado por Lu Carvalho em 31/10/2010
Código do texto: T2589493
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