Eu? Tem certeza?
A fazenda onde nasceram Avelino e Toninha, no município goiano de Jataí, possuia terras férteis, de chão vermelho, propícias à plantação de variados produtos forrageiros, destinados à alimentação do gado das espécies bovina e caprina.
As chuvas fartas, caídas no tempo certo, proporcionavam grande fartura de grãos, especialmente de milho que, após a colheita, emprestavam suas folhas e caules secos à composição da ração animal, que era triturada e armazenada em silos-trincheira. Em período de escassez de pasto, esse alimento servia para nutrir o gado leiteiro e animais de pequeno porte, como os ovinos criados quase sem controle, por serem abundantes.
Os currais da fazenda eram edificados em madeira-de-lei, com tábuas lineares medindo três metros por trinta centímetros, parafusadas em troncos de aroeira, fincados em terreno firme. Um bem construído brete compunha a infraestrutura bovina; constituía-se de estreito corredor destinado a conduzir o gado para marcá-lo, vaciná-lo ou curá-lo de alguma enfermidade.
A casa sede da propriedade era grande, alpendrada, com vistas para um lago de razoável tamanho, ornamentado por árvores floridas e arredores forrados por gramados viçosos. A natureza ainda presentou a paisagem com grandes elevações montanhosas, revestidas de vegetação de tonalidade verde-escuro e coroadas por nuvens esvoaçantes.
A passarinhada cruzava os ares em revoadas sincronizadas, tal qual esmerado balé silvestre. O trinado dos canários e dos galos de campina, o gorjeio de diversificadas espécies de aves e o arrular da juriti misturavam-se ao repicar dos chocalhos pendurados no pescoço dos animais que ruminavam o alimento voltado do estômago. O azurro do jumento parecia anunciar a hora do rancho. Funcionava como um relógio, às onze horas, lembrando a aproximação do almoço, bem preparado pela negra Maria, excelente cozinheira.
A fazenda era a vida da família. O casal, filhos e netos, noras e genros, viviam naquele paraíso rural agradecidos a Deus por tê-los agraciados com tão generosa dádiva. Os dias eram trabalhados com dedicação e esforço. A produtividade dos roçados, para ser alcançada, recebia orientações de Tarcísio, agrônomo e filho mais velho do casal.
Quando jovem, seu Avelino cuidava dos negócios agropecuários com a sabedoria de bom administrador. Dona Toninha fazia questão de lidar com a horta sem lhe adicionar produtos químicos. Tudo em casa era consumido naturalmente. Vez ou outra matavam um gordo porquinho e dele extraiam a banha que lhes servia de tempero. Os ovos, consumidos com abundância, em forma de bolo, fritos ou adicionados ao leite quente, como saborosa gemada, eram colhidos diariamente pela vovó Tonha, como lhe chamavam os netos. Ela cuidava das galinhas com dedicação. Ao sacrificá-las em ritual gastronômico, lamentava a perda de preciosas vidas silvestres.
Assim eram os dias daqueles simpáticos goianos, vividos confortável e harmoniosamente. O tempo, implacável em sua interminável caminhada, foi passando, passando, até que os filhos mudaram-se para a cidade, a fim de atenderem às necessidades educacionais da prole.
Com o transpor dos anos, os velhinhos, cansados, vergados pelo peso de repetidas primaveras, residiam na companhia da negra Maria, visitados por filhos e netos em períodos cada vez mais espaçados. A saúde precária fazia-lhes sofrer as agruras de uma existência prolongada.
Em certo dia, seu Avelino telefonou ao médico da família, um otorrino de larga experiência, pedindo-lhe para determinar a visita de dona Toninha ao consultório. Disse ele, ao especialista:
– Doutor, minha mulher está cada vez mais surda. Nada ouve. Repito cansativas vezes um assunto ou um pedido. As respostas nunca acontecem.
Respondeu-lhe o médico:
– Faça o seguinte: Como teste, fale com ela a certa distância e vá diminuindo o espaço a cada dez metros, até que ela consiga ouvi-lo. Dessa forma, terei como estabelecer um parâmetro para o problema.
Assim fez o devotado marido. Chegando-se a trinta metros de distância da mulher, perguntou-lhe:
– Toninha, o que temos, hoje, para o jantar?
Ele nada ouviu em resposta.
Repetiu a pergunta, dessa vez a vinte metros distante:
– Toninha, o que temos, hoje, para o jantar?
Novamente o silêncio irritante. Aproximando-se a cada dez metros, formulava a pergunta aumentando a voz, na tentativa de se fazer ouvir.
…
– Toninha, o que temos, hoje, para o jantar?
Naquele momento, ele falou quase ao ouvido de dona Tonha. Ela respondeu visivelmente aborrecida:
– Frango, seu filho da p... Já respondi três vezes!
Na semana seguinte, seu Avelino, este sim, o verdadeiro surdo dessa verídica história, foi visitar o médico, conduzido pela esposa que falava bem próximo ao seu ouvido:
– Cuidado com os buracos da rua!
– Você falou querida? – perguntou o marido, aproximando a mão direita da orelha, em concha, tentando ouvir o que dissera a mulher.
– Surdo e cego! Preste atenção aos carros!
– O que?
– Nada! – respondeu dona Tonha, puxando seu Avelino pelo braço para livrá-lo de ser atropelado por uma moto que passara com o sinal de trânsito fechado.