PAI, AFASTA DE MIM ESSE CÁLICE
Não sou médico nem cientista, mas posso ficar intrigado com certas coisas. Hoje em dia, nem em barzinho ou tabacaria se pode fumar. Falam bastante em fumante passivo e coisas do gênero. Deve ser correto, sou a favor da vida saudável e não quero defender o vício. Mas nada me impede de pensar em como era a vida antigamente. Os fumantes passivos, se é que existiam, deviam sofrer muito, talvez tenham morrido na tenra idade, poucos sobreviveram, quem sabe. Lembro que se fumava em avião, especialmente nas longas viagens internacionais; fumava-se em hospitais, nas salas de aulas acadêmicas, em qualquer restaurante, até no cinema; fumava-se no quarto de dormir, com as crianças pequenas presentes. Nas minhas crises mais agudas de asma, minha avó me fazia fumar certa erva medicinal enrolada em palha, que quase fazia meu pulmão explodir, mais pela ardência da palha do que da bendita erva. As visitas eventualmente fumavam charuto ou cachimbo na casa da gente e nos restaurantes mais acanhados : era uma indelicadeza reclamar, salvo mulher grávida em fase de enjoos. As crianças não reclamavam, como geralmente não reclamam até hoje. Em certos locais noturnos, era difícil perceber-se o entorno, tal a nuvem de fumaça que se acumulava, geralmente sem qualquer arejamento. Interessante que não tenho lembrança de reclamações. Ninguém falava nada a respeito e os médicos eram cúmplices desse estado de coisas, inclusive porque também fumavam. Se não lembram, assistam a filmes nem tão antigos. Vocês devem recordar, não faz muito tempo, fumava-se dentro de supermercado e todos os automóveis tinham isqueiro e cinzeiros, inclusive atrás, e nenhum proprietário incomodava-se que os passageiros fumassem, assim como também ocorria nos transportes coletivos. Era um tempo medieval, os mais jovens nem podem imaginar. Não sei como sobrevivemos, muitos até depois dos noventa. Muita sorte. O cigarro era banal, assim como a bebida alcoólica, talvez pior, mas só ele foi e continua sendo duramente cerceado, para alívio dos borrachos, drogaditos e maconheiros - estes em alta. Ademais, é preciso lembrar que fumar não é proibido e a produção e venda de cigarros são absolutamente legais. Sou favorável às campanhas antitabagistas inteligentes, afinal, a nicotina vicia, a fumaça faz mal, inclusive para alguns não fumantes, que têm alergia verdadeira a ela. Os excessos críticos e o eventual preconceito deveriam ser canalizados para o combate a outros males causadores de chagas sociais e éticas horripilantes. Quanto a ser, quem sabe, um mau exemplo, até acho graça: meus irmãos não fumam, meus filhos nunca puseram um cigarro na boca, nem minha mulher, nora, genro ou sobrinhas, assim como grande parte dos parentes e amigos. Não me consta que algum aluno na Faculdade de Direito tenha começado a fumar porque eu fumava em sala de aula. O mundo mudou, minha gente. Claro, o cigarro não é como ovo de galinha, que diziam fazer mal à saúde, até ser recentemente absolvido. Também falam muito mal do leite, da banha de porco, da manteiga e da carne vermelha, mas creio que aí pode existir uma pitada ainda maior de neurose. Por sorte, prestigiam o vinho: dizem que um cálice faz bem à saúde, imagina só uma garrafa inteira como gosto de tomar, às vezes um pouquinho mais. Mas tudo evoluiu, queremos viver cem anos ou mais. Ninguém deve fumar, é claro, mas vamos combater com vigor também a fumaça tóxica dos veículos, a maconha, a bebida alcoólica, os estimulantes ou calmantes, pois tudo é do mesmo naipe. E amansar a neurose. Enfim, é só isto: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.