DE PERO VAZ DE CAMINHA A ERENICE GUERRA

Prof. Antônio de Oliveira

aoliveira@caed.inf.br

O costume brasileiro de ajudar um parente com um emprego público a fim de engordar o faturamento do clã, de favorecer um aliado ou de barganhar, aportou, em porto seguro, vindo de caravela e com a pena de escrever e de assinar de Pero Vaz de Caminha. Nas últimas linhas da carta, certidão de nascimento do Brasil, na qual relata ao rei dom Manuel, como num diário, a descoberta de uma terra exótica, o zeloso escrivão pede ao rei que, “por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro...”. Em seguida: “Beijo as mãos de Vossa Alteza”. Há quem diga que Pero Vaz de Caminha não apenas aproveitou o ensejo para fazer o pedido, mas esta teria sido a motivação principal desse documento tornado preciosidade histórica: interceder pelo pai de seus netos, então degredado na Ilha de São Tomé. Desde então, passando pelas capitanias hereditárias, herdou-se, consolidou-se, virou cultura nacional o nepotismo; medrou nesta terra onde, em se “plantando”, tudo dá...

Assumir esse tipo de análise pode parecer pessimismo, falta de patriotismo. Mas a verdade é que, não fora essa tradição, por sinal, cada vez mais entranhada, a realidade brasileira seria outra, e bem melhor. Afinal, entre nós, o QI de quem indicou, ou o apoio do padrinho ao candidato, vale mais que o QI quociente de inteligência do indicado. Um apelo, um telefonema, uma conversa ao pé do ouvido, uma carta de apresentação tipo prefácio de livro assinado por gente famosa para dar uma mãozinha ao autor. Em outras palavras, nem sempre é o mérito que conta. Mérito é a qualidade que torna um livro bem escrito, com ou sem prefácio, que faz uma empresa ou uma pessoa digna de contrapartida mediante eleição, concurso ou em processo de licitação imparcial, sem cartas marcadas. O dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues considerou o Brasil “uma pátria em chuteiras”. Não seria também uma pátria em muletas?

A palavra nepos, em latim, significa neto ou sobrinho. No plural, nepotes, ou, em italiano, nipoti ou nepoti, significam também os descendentes, os pósteros, os vindouros. O sufixo ismo foi incorporado, em Roma, a partir de supostos privilégios e favorecimentos concedidos aos “sobrinhos” por alguns papas.

Páginas deletérias da história, mas reveladoras de práticas que se repetem ainda hoje em dia, e como! Para tanto, basta dispor de poder e ter uma caneta na mão. Nosso Presidente declarou, “quatro meses e alguns dias” antes de terminar o mandato: “Tem gente que se mata para ser presidente por um dia e ainda tenho [tinha] quatro meses e alguns dias. Ainda tenho a caneta para fazer muita miséria nesse país”.

Nosso Presidente sopesou pragmaticamente o poder discricionário de uma caneta nas mãos da autoridade. É de crer, sem segundas intenções, mas que uma caneta faz miséria, ah! isso faz... Por falar em caneta, Guilherme de Ockham, em Paris, imiscui-se em discussões políticas advogando as pretensões regalistas de Felipe, o Belo, e, mais tarde, de Luiz de Baviera, contra Bonifácio VIII. Conta-se que o frade teria dirigido ao príncipe bávaro as seguintes palavras, em latim: “Imperator, defendas me gladio, ego te defendam calamo”. O imperador defendesse o frade com a espada que ele, escrevendo, defenderia Sua Majestade. Uma caneta, aqui equiparada a espada, vale bem uma Lei Áurea, um discurso demagógico, um parecer encomendado, um negócio fraudulento, uma nomeação. Se pela mercê de El-Rei ou pela intercessão de Erenices Guerra da vida, o “nepote” agradece.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 30/09/2010
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