UM TEMPO PARA GENTILEZA

O profeta bem que poderia dar nome
à mais importante medalha da nação 


     Tenho vontade de sugerir ao governo – qualquer um – a criação da mais importante medalha do país: a Medalha Gentileza. Nada de medalha Tiradentes, Pedro Ernesto, Cruzeiro do Sul. Tudo isso é muito importante, mas já está ficando banal, perdeu o sentido – hoje em dia todo mundo ganha, é igual aos “Títulos de Cidadão” que as cidades distribuem a torto e a direito. 
     A Medalha Gentileza iria para os heróis anônimos, os loucos que persistem em lutar contra os abismos que separam um ser humano do outro, aqueles que doam uma mensagem e não esperam nada em troca. Uma medalha para os que acham possível mudar o mundo com um sorriso, uma palavra, um olhar. 
     Nada de grandes utopias políticas, sistemas econômicos, revoluções armadas, teses de mestrado. Nada de intelectualismos herméticos. Nada de bravura em batalha, doutrinações religiosas, benemeritices sociais de qualquer tipo. Nada de esmolas governamentais e programas eleitorais de divisão de miséria disfarçados de distribuição de renda. Apenas um sorriso desinteressado quando o mundo parece cair sobre nossas cabeças. Só amor, porque o resto é vazio. 
     O patrono da medalha seria, para quem não conhece, o Profeta Gentileza – ou melhor, José Datrino – uma lendária figura que circulou pelas ruas do Rio por quase quatro décadas, levando uma mensagem diferente. Nascido em 11 de abril de 1917 em Cafelândia (SP), Datrino tornara-se um próspero empresário do ramo dos transportes quando na véspera do Natal de 1961 acordou ouvindo vozes que o mandavam abandonar tudo, esquecer das coisas materiais e dedicar-se apenas ao mundo espiritual. 
     Poucos dias antes, em 17 de dezembro, acontecera uma das maiores tragédias circenses da História, o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói (RJ), onde morreram mais de 500 pessoas, a maioria crianças. José Datrino pegou um dos seus caminhões e foi para o local do incêndio. Lá, no lugar que seria seu lar por quatro anos, movido de uma fé que muitos chamavam loucura, planou jardim e horta sobre as cinzas. Confortou os familiares e vítimas da tragédia, passando a ser chamado por todos “Jose Agradecido” ou “Profeta Gentileza”. 
     Nos anos seguintes, peregrinou pelas ruas de Niterói e Rio, levando sua mensagem. Era uma presença constante nas barcas que faziam a travessia entre as duas cidades, nos trens e ônibus. No meio do stress diário da metrópole, ele vivia seu ritmo e dizia a todos que era possível viver a vida com gentileza, em paz. A partir de 1980, Gentileza assumiu uma nova missão: pintar mensagens em 56 pilares do viaduto do Caju, entre o Cemitério e a Rodoviária. Era o registro de sua visão do mundo e sua proposta de mudança. 
     Após a sua morte, em 29 de maio de 1996, os painéis do profeta Gentileza foram alvo de pichações e, depois, apagados – cobertos por uma indescritível tinta cinza, num momento de rara insensibilidade do governo municipal do Rio. O episódio virou uma linda música de Marisa Monte – ela mesma uma artista que mereceria a Medalha Gentileza, caso fosse criada. Por sorte, a insanidade política não dura para sempre e os painéis do profeta foram restaurados, entre 1999 e 2000, pela Prefeitura. 
     Possivelmente, em qualquer lugar do mundo há pessoas como Gentileza. Muitos não têm casa, não têm emprego – são tratados como insanos, porque é loucura ser gentil. Alguns foram movidos por tragédias pessoais, pela perda de familiares, a dor mais profunda, mas, ao invés de cultivar o rancor e promover a violência, decidiram levar carinho ao semelhante. 
     Gentileza era assim, e devia mesmo dar nome a uma medalha – uma condecoração etérea que fosse, uma rosa, um aperto de mão, algo que simbolizasse a esperança na salvação do homem. Pensei em sugerir isso ao governo – qualquer um – mesmo achando que os políticos não entendem nada desses assuntos. Mandaram apagar e restaurar as palavras de Gentileza, como quem não sabe o que faz ... Por que fariam dele uma medalha? 
     Mas se eu perder a fé na humanidade, de que valeria ter lido as palavras do profeta? 

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