Sucumbiu às delícias da China
Ferdinando. Esse nome deveria ser lembrado como exemplo de pessoa inteligente, íntegra, estudiosa e de extremada dedicação à família, constituída da esposa, senhora de vocação altruística e de santos princípios religiosos; do filho, rapaz sério, competente e trabalhador, a exemplo do pai; e de graciosa jovem, saída à imagem da mãe. Os quatro constituíam prole de invejável admiração.
Nando, como era conhecido na intimidade, nasceu em janeiro de 1957, em Aroeiras, cidade encravada no sertão pernambucano. Era filho de próspero comerciante de secos e molhados, cidadão avesso à política. A mãe lecionou em escolas da municipalidade, superando as rotineiras faltas de recursos financeiros com seu esforço quase maternal.
Depois de completado o ensino fundamental, o rapaz transferiu-se para o Recife, onde estudou até formar-se em Administração de Empresas, diploma obtido com louvor na universidade federal do seu estado de origem. O garoto esforçara-se para superar as deficiências do ensino, complementando seus conhecimentos acadêmicos com leituras técnicas em livros cedidos pela biblioteca da faculdade, um número limitado de obras, no sentido físico da expressão, porém abundante se consideradas as informações contidas nas prestações de contas apresentadas pela reitoria.
Ferdinando era deveras estudioso e responsável. Nem de longe aparentava o ilustre conterrâneo, avesso à leitura, mentiroso, desafeto dos princípios éticos e em guerra constante com a honestidade, mas que vencera na vida por lances que os mais proeminentes estudiosos da psicanálise não serão capazes de explicar.
Campina Grande, na Paraíba, é uma cidade de reconhecida vocação intelectual. Os nascidos ali se orgulham das boas escolas e das três universidades de que dispõe. A Rainha da Borborema é a capital econômica do nordeste, para onde convergem negócios dos mais variados ramos de atividade empresarial.
Hoje, a terra de consagrados homens das letras e da ciência abriga o mais importante centro tecnológico na área de informática. Sua faculdade cibernética tem servido aos interesses de alunos de todo o Brasil, que a procuram para doutorar-se em ciência da computação. Ultimamente, esse paraíso nordestino do saber moderno foi agraciado com o titulo de o principal polo tecnológico do mundo.
Por duas vezes recebeu tal honraria.
Ferdinando, o personagem de nossa estória, fez mestrado em matemática e doutorado na área de computação eletrônica, em Campina Grande, a terra por adoção deste modesto escrevinhador. Títulos à mão, em número suficiente para invejar noventa e nove de cem apaniguados políticos infiltrados na administração petista, mudou-se para São Paulo. Lá, foi investido em funções relevantes, tornou-se presidente de uma multinacional, viajou mundo afora, expressando-se em três idiomas além do português, que domina com a desenvoltura de um gramático, a elegância de grandes linguistas e o estilo aprimorado de renomados escritores. Nesse aspecto, também o invejo, desejoso de imitá-lo nas mais simples de suas produções literárias.
Com toda sua sabedoria, o tempo esgotado pelos muitos afazeres, nada impedia que Nando devotasse à família os maiores cuidados. Dizia, com indisfarçável sinceridade, que a mulher com quem juntara as escovas de dente há quase duas décadas merecia completa atenção, todo o seu amor e ilimitado respeito. As viagens em seu jatinho executivo eram constantes. A última fora realizada à China, a trato de negócios. Em lá chegando, debruçou-se sobre o trabalho, em frenético esforço para superar a ausência da esposa e dos filhos.
Mas, como ninguém é de ferro, certa noite, envolvido por irrecusável convite de um executivo americano, com quem entabulara bons negócios, foi a uma “casa de mulheres”. Bons uísques, uma dose, mais outra, depois outras, coisa que antes fazia com certa parcimônia, Ferdinando esqueceu as juras de amor e de fidelidade irrestrita à esposa e abusou da sexualidade, aflorada pelos carinhos libidinosos de uma chinesinha de encantos irresistíveis. Entregou-se aos deleites da carne, aos prazeres do sexo, em noite presidida por Baco, o deus do vinho, e por Afrodite, a deusa do amor, entidades responsáveis por casamentos desfeitos, apesar das promessas, do controle emocional e da vergonha propriamente dita de seus autores.
Nando retornou ao Brasil chateado, arrependido da traição à mulher amada, da ressaca moral a martelar a consciência pesada, pecaminosa, irresponsável. De todas as expressões, nenhuma tinha menor força; por isso, o sentimento moralmente errado doía tanto. E pesava ainda mais.
Alguns dias após o retorno da China, Ferdinando começou a sentir certo desconforto em sua genitália. A coisa não cessava de doer; aqui e ali, apresentava uma coloração esverdeada, mal cheirosa, algo terrível que ele não sabia explicar, até que consultou um médico.
– Você esteve na China, não?
– Sim.
– E manteve relações com garotas de programa, não foi?
– Sim – respondeu envergonhado e temeroso da resposta do doutor, prestes a atormentar-lhe a vida.
– Infelizmente, isso não tem cura. O pênis precisa ser cortado.
Sem acreditar no que ouvira, saiu à procura de outros médicos. Urologistas, catedráticos da faculdade de medicina, especialista dos mais variados ramos da ciência médica, e todos confirmaram o diagnóstico sombrio do primeiro esculápio. Aterrorizado com o grave problema, resolveu confessar à esposa o que lhe acontecera. E o que estava prestes a vir. A mulher, insatisfeita com a notícia, mas compadecida de sua situação, sugeriu que retornasse à China. Lá, os médicos, por certo, saberiam a cura para o mal, originado daquele exótico país.
O médico chinês, ao examiná-lo, sorriu com aquela risadinha característica dos asiáticos mais expansivos. Sem esconder os dentes sob os finos lábios, perguntou a Ferdinando:
– Você esteve na China, non?
– Sim – respondeu aborrecido, por ser aquela a enésima vez que pronunciava a afirmativa nos últimos dias.
– A senhor bolinou as galotas, non?
– É verdade.
– Médica basilelo disse para coltar, non?
– Sim – mais uma vez a afirmação saiu-lhe como brasa, queimando-lhe a língua.
– Médica basilelo não sabe nada. Non plecisa coltar – disse o chinesinho, balançando a cabeça para os lados e esboçando aquele sorriso, para Nando um tanto alvissareiro.
– Então, existe tratamento para isso?
– Non... Non plecisa coltar… Cairá sozinha!
Ferdinando desmoronou.
Pobre rapaz! Inteligente a mais da conta, puritano ao longo da vida, comedido em suas ações além das fronteiras matrimoniais, fino conhecedor da iguaria caseira que o aguardava paciente e amorosamente, sucumbiu ao tempero da comida chinesa, irresistível naquele momento de solidão e de irrefletido pensar.