A VERDADE RELATIVA
Duras lições aprendidas
quando estive na pele do vilão
Uma das frases mais instigantes da Bíblia não foi dita por um de seus heróis – judeus ou cristãos – mas sim por um vilão. Está lá, em João 18 - 38, o questionamento de Pôncio Pilatos, governador romano na Judéia, ao interrogar seu prisioneiro: “O que é a verdade, afinal?”. O texto pode variar de acordo com cada tradução, mas sempre mantém a mesma essência. Isso perguntado diante a alguém que acabara de dizer: “Vim para dar testemunho da Verdade”.
Relativizar a verdade é um mal antigo – não surgiu em Roma, nem com Abraão. Deve ter nascido com a humanidade, para permitir o surgimento das “meias-verdades”, das “mentiras sociais”, das “verdades históricas e/ou científicas” nunca realmente comprovadas. Pilatos, prestes a mandar para a flagelação e a morte ninguém menos que Jesus Cristo, solta no mundo essa pergunta desconcertante – que só não abalou o próprio Cristo porque sua natureza era mais que humana.
Não são muitas as frases atribuídas ao execrado governador romano na Bíblia, mas, ainda assim, ele é um dos personagens mais marcantes da tragédia da Paixão de Cristo – que repete, na vida real, a força de uma tragédia de Ésquilo ou Sófocles, com o padecimento do herói levando à catarse coletiva e à iluminação. E que não se veja nessa comparação qualquer desrespeito, pois sou cristão e homem de teatro, portanto, dou muito valor às duas coisas.
Minha carreira como ator, aliás, não é das mais brilhantes – atuei apenas em produções amadoras e semiprofissionais – por isso sempre levei mais fé no que fiz como autor teatral. Porém, no período em que atuei com mais freqüência, tive a oportunidade de interpretar pelo menos um grande personagem, exatamente Pôncio Pilatos.
O papel de Pilatos me chegou meio por acaso, numa montagem do “Auto da Paixão de Cristo”, em 1999, pela Cia. Parafernália, em Itaboraí. Chamado pelo meu amigo Zeca Palácio para auxiliá-lo na direção, em uma semana, com pouquíssimos ensaios, acabei no palco na pele do governador Romano, substituindo um jovem ator que não se sentia à vontade no papel. Como tenho certa fixação pela Paixão de Cristo, talvez a maior marca da minha criação católica, encarei o desafio.
Quando me vi com as poucas frases de Pilatos na peça, lembrei imediatamente da cena do filme “A última tentação de Cristo”, em que Pilatos (o astro de rock David Bowie) interrogava Jesus (Willem Dafoe). Bowie, com seu olhar vítreo, deu a Pilatos um tom entre a ironia e a aristocracia britânica, que me chamou a atenção. O seu sotaque inglês foi utilizado para mostrá-lo como um estrangeiro na “Judéia americana” de Martin Scorcese. Pilatos quase simpatiza com aquele judeu, mas sabe que terá de condená-lo. Novamente, surge o questionamento à verdade.
Essa pergunta era, para mim como ator, mais importante no julgamento de Cristo do que o ato de lavar as mãos (tão teatral), que foi feito quando tudo já estava decidido. Até à aquela pergunta, Pilatos ainda não sentenciara o prisioneiro e não sucumbira à pressão do Sinédrio, talvez até visse em Jesus um inofensivo profeta, como as dezenas que surgiam regularmente na Judéia. As peças ainda estavam sobre o tabuleiro ...
Nesse ponto me vem outra verdade cheia de nuances: a verdade jurídica. É o mesmo fenômeno que sentenciava inocentes à morte na Judéia de Herodes e Pilatos, ou nas cadeias superlotadas pelo Brasil. A mesma que permite a salvaguarda aos poderosos, aos ricos, aos mais hábeis politicamente, e trata com absoluto rigor os desfavorecidos. A verdade jurídica é relativa – se não o fosse, por que existiriam advogados? Bastaria que se cumprisse fielmente o que está escrito.
Estar na pele de Pôncio Pilatos me ensinou algumas coisas: o quanto é cruel a relativização da verdade – que se transforma numa autorização para fazer qualquer coisa; o quanto é importante ser justo, para não condenar o inocente; o quanto um erro pode marcar a sua vida inteira, e talvez ser lembrado por milênios; o quanto a pena de morte é estúpida, pois não permite reparação; o quanto até mesmo a verdade religiosa tem sido relativizada para permitir atrocidades, perseguições, terrorismo, guerras e outras mazelas da humanidade.
Quando estava no palco pensei: “esse homem estava tão perto da verdade, e não a enxergou!”. Que Deus nos permita não sermos tão cegos ...
(Direitos reservados ao autor. Publicado pela primeira vez em 17/03/2005 no blog do autor)
Duras lições aprendidas
quando estive na pele do vilão
Uma das frases mais instigantes da Bíblia não foi dita por um de seus heróis – judeus ou cristãos – mas sim por um vilão. Está lá, em João 18 - 38, o questionamento de Pôncio Pilatos, governador romano na Judéia, ao interrogar seu prisioneiro: “O que é a verdade, afinal?”. O texto pode variar de acordo com cada tradução, mas sempre mantém a mesma essência. Isso perguntado diante a alguém que acabara de dizer: “Vim para dar testemunho da Verdade”.
Relativizar a verdade é um mal antigo – não surgiu em Roma, nem com Abraão. Deve ter nascido com a humanidade, para permitir o surgimento das “meias-verdades”, das “mentiras sociais”, das “verdades históricas e/ou científicas” nunca realmente comprovadas. Pilatos, prestes a mandar para a flagelação e a morte ninguém menos que Jesus Cristo, solta no mundo essa pergunta desconcertante – que só não abalou o próprio Cristo porque sua natureza era mais que humana.
Não são muitas as frases atribuídas ao execrado governador romano na Bíblia, mas, ainda assim, ele é um dos personagens mais marcantes da tragédia da Paixão de Cristo – que repete, na vida real, a força de uma tragédia de Ésquilo ou Sófocles, com o padecimento do herói levando à catarse coletiva e à iluminação. E que não se veja nessa comparação qualquer desrespeito, pois sou cristão e homem de teatro, portanto, dou muito valor às duas coisas.
Minha carreira como ator, aliás, não é das mais brilhantes – atuei apenas em produções amadoras e semiprofissionais – por isso sempre levei mais fé no que fiz como autor teatral. Porém, no período em que atuei com mais freqüência, tive a oportunidade de interpretar pelo menos um grande personagem, exatamente Pôncio Pilatos.
O papel de Pilatos me chegou meio por acaso, numa montagem do “Auto da Paixão de Cristo”, em 1999, pela Cia. Parafernália, em Itaboraí. Chamado pelo meu amigo Zeca Palácio para auxiliá-lo na direção, em uma semana, com pouquíssimos ensaios, acabei no palco na pele do governador Romano, substituindo um jovem ator que não se sentia à vontade no papel. Como tenho certa fixação pela Paixão de Cristo, talvez a maior marca da minha criação católica, encarei o desafio.
Quando me vi com as poucas frases de Pilatos na peça, lembrei imediatamente da cena do filme “A última tentação de Cristo”, em que Pilatos (o astro de rock David Bowie) interrogava Jesus (Willem Dafoe). Bowie, com seu olhar vítreo, deu a Pilatos um tom entre a ironia e a aristocracia britânica, que me chamou a atenção. O seu sotaque inglês foi utilizado para mostrá-lo como um estrangeiro na “Judéia americana” de Martin Scorcese. Pilatos quase simpatiza com aquele judeu, mas sabe que terá de condená-lo. Novamente, surge o questionamento à verdade.
Essa pergunta era, para mim como ator, mais importante no julgamento de Cristo do que o ato de lavar as mãos (tão teatral), que foi feito quando tudo já estava decidido. Até à aquela pergunta, Pilatos ainda não sentenciara o prisioneiro e não sucumbira à pressão do Sinédrio, talvez até visse em Jesus um inofensivo profeta, como as dezenas que surgiam regularmente na Judéia. As peças ainda estavam sobre o tabuleiro ...
Nesse ponto me vem outra verdade cheia de nuances: a verdade jurídica. É o mesmo fenômeno que sentenciava inocentes à morte na Judéia de Herodes e Pilatos, ou nas cadeias superlotadas pelo Brasil. A mesma que permite a salvaguarda aos poderosos, aos ricos, aos mais hábeis politicamente, e trata com absoluto rigor os desfavorecidos. A verdade jurídica é relativa – se não o fosse, por que existiriam advogados? Bastaria que se cumprisse fielmente o que está escrito.
Estar na pele de Pôncio Pilatos me ensinou algumas coisas: o quanto é cruel a relativização da verdade – que se transforma numa autorização para fazer qualquer coisa; o quanto é importante ser justo, para não condenar o inocente; o quanto um erro pode marcar a sua vida inteira, e talvez ser lembrado por milênios; o quanto a pena de morte é estúpida, pois não permite reparação; o quanto até mesmo a verdade religiosa tem sido relativizada para permitir atrocidades, perseguições, terrorismo, guerras e outras mazelas da humanidade.
Quando estava no palco pensei: “esse homem estava tão perto da verdade, e não a enxergou!”. Que Deus nos permita não sermos tão cegos ...
(Direitos reservados ao autor. Publicado pela primeira vez em 17/03/2005 no blog do autor)