O ÚLTIMO CRÉDITO
A noite da cidade pode reservar
algumas estranhas surpresas
Era o seu último crédito. Sabia que algo estava para acontecer – e sempre que a intuição surgia, não conseguia ignorá-la. Uma sensação de angústia, de um perigo iminente, dominou seu espírito e, durante quase dez minutos, andara por toda a avenida em busca de um telefone público que funcionasse ... E nada.
- Por que será que essas coisas nunca funcionam quando a gente precisa? – reclamou, em voz alta.
A noite caminhava, rápida, para a madrugada, as ruas mudavam sua fauna – um caminhão de lixo passou ao seu lado, lembrando o quanto tudo é descartável, tudo apodrece e acaba.
Era o seu último crédito. Olhou o cartão com uma imagem moderna de algum santo e penso: “Meu filho coleciona cartões – ia gostar deste”. O santo da vez era São Judas Tadeu, padroeiro das causas impossíveis.
- Impossível é encontrar um orelhão funcionando nesta cidade!
Seguiu em sua angústia particular, que comportava em si mesma a angústia de todos, os medos irracionais e neuroses de todos, as armadilhas da cidade. Um grupo de travestis passou, provocando, mas ele nem percebeu. Queria ligar, era urgente.
Virou uma esquina e viu um orelhão ocupado. Alguém falava aos berros, gesticulando muito. “Aquele está funcionando, maravilha!” Foi até lá, mas a rua estava completamente deserta. Como iniciar uma fila num telefone público, quase de madrugada, numa rua deserta? Apesar da dúvida, a necessidade de ligar era absolutamente urgente, e não houve outro jeito: parou atrás do homem que discutia com alguém nervosamente.
Podia ouvir algumas palavras entrecortadas e a fúria do homem começou a lhe dar medo.
- Sua desgraçada!... É assim que você paga pelo prazer que eu te dei? Quem você pensa que eu sou?
O homem nem percebera a sua presença. Ao que parece, a amante lhe dera um fora e ele estava furioso. Mas quem, numa situação dessas, resolve ligar para casa e discutir pelo telefone ... telefone público, ainda por cima!? A discussão estava se alongando e a angústia, a necessidade louca de ligar aumentava ainda mais. “E se eu procurasse outro orelhão?”. Não, aquele ainda estava funcionando, era a melhor chance de ligar para casa. Era o seu último crédito.
De repente, o homem bateu com o fone no gancho e esbravejou:
- Cachorra! Desligou na minha cara! Eu mato aquela desgraçada!
O homem virou-se e só então percebeu a presença de alguém iniciando uma insólita fila quase à meia-noite.
- Tá olhando o que, meu irmão?
- Nada, eu só preciso usar o telefone ...
- E fica ouvindo a conversa dos outros, cara!? Tem vergonha não?
- Só tava esperando você acabar, só isso!
O homem abaixou a cabeça, respirou fundo, e tentou se controlar. Depois de uma pausa, autorizou:
- Tudo bem, liga aí! Depois eu ligo de novo ...
- Obrigado!
A angústia iria terminar. Tirou o fone do gancho. Estava nervoso. O número chamou várias vezes antes que a mulher, com a voz embargada e sensivelmente nervosa, atendesse:
- Que droga, Anselmo! Eu já não te disse que acabou? O tempo com você foi bom, mas eu não consigo mais viver essa vida dupla, entende? Eu tenho um filho, não vou largar o meu marido ... Ele é até um cara legal ... Vê se arruma outra, Anselmo, que eu preciso dar um jeito na vida!
As pernas tremeram ...
- Rita!? Rita, é você?
- Antônio!? – uma pausa, como se ela se desse conta da situação – Antônio, eu pensei que fosse outra pessoa ...
- Percebi ...
Seu estômago ficou embrulhado. A angústia virou nojo. Deixou o fone cair e olhou para o lado. O homem, já não tão nervoso, ainda esperava.
- Ô Anselmo!
- Como é que você sabe o meu nome, cara?
- É pra você ... Mas fala rápido, que é o meu último crédito.
(Direitos reservados ao autor. Publicado pela primeira vez em 25/03/2006 no blog do autor)
A noite da cidade pode reservar
algumas estranhas surpresas
Era o seu último crédito. Sabia que algo estava para acontecer – e sempre que a intuição surgia, não conseguia ignorá-la. Uma sensação de angústia, de um perigo iminente, dominou seu espírito e, durante quase dez minutos, andara por toda a avenida em busca de um telefone público que funcionasse ... E nada.
- Por que será que essas coisas nunca funcionam quando a gente precisa? – reclamou, em voz alta.
A noite caminhava, rápida, para a madrugada, as ruas mudavam sua fauna – um caminhão de lixo passou ao seu lado, lembrando o quanto tudo é descartável, tudo apodrece e acaba.
Era o seu último crédito. Olhou o cartão com uma imagem moderna de algum santo e penso: “Meu filho coleciona cartões – ia gostar deste”. O santo da vez era São Judas Tadeu, padroeiro das causas impossíveis.
- Impossível é encontrar um orelhão funcionando nesta cidade!
Seguiu em sua angústia particular, que comportava em si mesma a angústia de todos, os medos irracionais e neuroses de todos, as armadilhas da cidade. Um grupo de travestis passou, provocando, mas ele nem percebeu. Queria ligar, era urgente.
Virou uma esquina e viu um orelhão ocupado. Alguém falava aos berros, gesticulando muito. “Aquele está funcionando, maravilha!” Foi até lá, mas a rua estava completamente deserta. Como iniciar uma fila num telefone público, quase de madrugada, numa rua deserta? Apesar da dúvida, a necessidade de ligar era absolutamente urgente, e não houve outro jeito: parou atrás do homem que discutia com alguém nervosamente.
Podia ouvir algumas palavras entrecortadas e a fúria do homem começou a lhe dar medo.
- Sua desgraçada!... É assim que você paga pelo prazer que eu te dei? Quem você pensa que eu sou?
O homem nem percebera a sua presença. Ao que parece, a amante lhe dera um fora e ele estava furioso. Mas quem, numa situação dessas, resolve ligar para casa e discutir pelo telefone ... telefone público, ainda por cima!? A discussão estava se alongando e a angústia, a necessidade louca de ligar aumentava ainda mais. “E se eu procurasse outro orelhão?”. Não, aquele ainda estava funcionando, era a melhor chance de ligar para casa. Era o seu último crédito.
De repente, o homem bateu com o fone no gancho e esbravejou:
- Cachorra! Desligou na minha cara! Eu mato aquela desgraçada!
O homem virou-se e só então percebeu a presença de alguém iniciando uma insólita fila quase à meia-noite.
- Tá olhando o que, meu irmão?
- Nada, eu só preciso usar o telefone ...
- E fica ouvindo a conversa dos outros, cara!? Tem vergonha não?
- Só tava esperando você acabar, só isso!
O homem abaixou a cabeça, respirou fundo, e tentou se controlar. Depois de uma pausa, autorizou:
- Tudo bem, liga aí! Depois eu ligo de novo ...
- Obrigado!
A angústia iria terminar. Tirou o fone do gancho. Estava nervoso. O número chamou várias vezes antes que a mulher, com a voz embargada e sensivelmente nervosa, atendesse:
- Que droga, Anselmo! Eu já não te disse que acabou? O tempo com você foi bom, mas eu não consigo mais viver essa vida dupla, entende? Eu tenho um filho, não vou largar o meu marido ... Ele é até um cara legal ... Vê se arruma outra, Anselmo, que eu preciso dar um jeito na vida!
As pernas tremeram ...
- Rita!? Rita, é você?
- Antônio!? – uma pausa, como se ela se desse conta da situação – Antônio, eu pensei que fosse outra pessoa ...
- Percebi ...
Seu estômago ficou embrulhado. A angústia virou nojo. Deixou o fone cair e olhou para o lado. O homem, já não tão nervoso, ainda esperava.
- Ô Anselmo!
- Como é que você sabe o meu nome, cara?
- É pra você ... Mas fala rápido, que é o meu último crédito.
(Direitos reservados ao autor. Publicado pela primeira vez em 25/03/2006 no blog do autor)