JEREMIAS VAI À LUTA

Baseada em fatos que poderiam
ser reais no Brasil de hoje
 


     Jeremias e seus amigos já estavam no terceiro engradado de cerveja, mas o clima não estava muito melhor. Depois de quatro horas bebendo para esquecer, o máximo que conseguiram foi a sensação de que aquilo não adiantava nada. Bateu a depressão, e até as risadas bêbadas de antes sumiram. 
     Quando Seu Lopes, o dono do boteco, chegou com mais uma rodada de cerveja e churrasquinho, Jeremias levantou-se, rápido como um felino. A tontura veio e ele quase tropeçou nas próprias pernas. 
     - O que é isso, menino? – perguntou Seu Lopes, espantado com a reação do freguês. 
     O dono do bar conhecia Jeremias desde quando ainda era um moleque e ia até lá para jogar sinuca escondido dos pais. Era um bom garoto, que nunca se meteu em encrencas, e que trabalhava desde os 15 anos para pagar suas contas. De vez em quando, lá estava Jeremias no bar de sempre, para beber e jogar sinuca com os amigos. Era um bom freguês. 
     Nunca, em quase 20 anos, Seu Lopes vira Jeremias passar do ponto – beber mais do que agüentava – nem dar vexame. Daí o espanto quando o rapaz, meio trôpego, subiu na mesa, chutando copos e garrafas para o chão. Os amigos, assustados, levantaram correndo, tentando salvar o que podiam. Ele deu outra cambaleada, mas, por algum milagre, recuperou o equilíbrio. Quando começou a falar, a voz ainda estava pastosa. 
     - Eu sou Jeremias do Espírito Santo. Brasileiro, carioca, casado e pai de um menino que se chama Jeremias, como eu. Vim aqui hoje pra beber com meus amigos, porque aconteceu algo novo na minha vida: fui demitido! 
     Os outros fregueses do boteco, que ficava numa esquina movimentada do subúrbio, em Realengo, largaram suas bebedeiras particulares para acompanhar a de Jeremias, que prosseguia com seu discurso. 
     - Quinze anos numa mesma empresa, sem faltar, sem discutir com os chefes, cumprindo metas, estudando para ficar melhor no que fazia, e fui demitido sem, pelo menos, um “muito obrigado, Jeremias”! Só uma carta que dizia: “demitido por motivos de corte na folha salarial”. Eles simplesmente me cortaram da lista. 
     A essa altura, Jeremias chorava, e o choro foi, aos poucos, cortando o efeito do álcool e dando mais lucidez ao desabafo. Gente que passava pela rua parou para ouvir.      
     - Sempre ganhei meu dinheiro honestamente. Vim aqui pra pagar uma cervejada pros meus amigos, com o meu dinheiro, porque não sei quando vou poder fazer isso de novo. Dei pro meu filho a bicicleta que prometo há três anos, porque não sei como a minha vida vai ficar daqui pra frente. 
     Comovidas, algumas pessoas choravam. Quando mais falava, mais força Jeremias tirava de dentro de si mesmo. Uma patrulha da polícia parou na esquina, pensando que fosse briga, mas os próprios PMs ficaram para escutar. 
     - Vim aqui pra festejar a minha burrice e a minha inocência. Eu votei acreditando que o país ia mudar, que ia haver mais empregos, que eu, um trabalhador, ia ser respeitado. Mas as coisas não são assim ... Eu pago meus impostos, pago o salário deles lá em Brasília, mas eles não me escutam! O presidente paga churrasco pros amigos dele, mas é com o meu dinheiro – nisso, pelo menos, eu sou melhor do que ele. 
     Nessa hora, Jeremias foi aplaudido em cena aberta. Os oprimidos viam nele seu espelho. Seu Lopes, empolgado, gritou: 
     - Viva Jeremias! – e todos gritaram também. Decidido, o desempregado disse sua frase definitiva: 
     - Vou andar até Brasília e ele vai ter que me receber!

............................... 

     Nos dias seguintes, o drama e a caminhada de Jeremias até Brasília ganharam a mídia. Outros desfavorecidos resolveram fazer o mesmo, gente de todos os cantos. Alguns sindicatos e partidos pegaram carona na idéia. A TV acompanha a via crucis do desempregado como um reality show. 
     Quando chegou às portas do Palácio do Planalto, sujo, maltrapilho, com a pele torrada pelo sol, quase cem mil pessoas faziam um grande tumulto em Brasília.
Um assessor, engravatado, veio receber o já lendário caminhante, acompanhado de meia dúzia de seguranças. Recuperando as forças, Jeremias se antecipou: 
     - Eu sou Jeremias. Quero falar com o presidente!
A multidão fez silêncio. O assessor, temendo pelo pior, engoliu em seco, e soltou o discurso decorado: 
     - O Senhor Presidente viajou na noite de ontem para um encontro com o Presidente do Azerbaijão, para tratar sobre as relações comerciais entre os dois países. 
     Sem pestanejar, Jeremias disparou: 
     - Tudo bem, afinal ele tem que usar o novo avião que eu ajudei a pagar, não é mesmo? 
     O desempregado, em sua ira santa, olhou para trás e viu a multidão que, sabe-se lá por qual motivo, decidira acompanhá-lo, e voltou-se para o assessor, que permanecia como que congelado. 
     - Então, meu amigo, eu espero ele voltar. Enquanto isso, libera aí a cerveja e o churrasco pros meus amigos: a gente é que ta pagando! 

(Direitos reservados ao autor. Publicado pela primeira vez em 01/04/2005 no blog do autor)