NÉSCIOS E PAPALVOS
Meu gosto por leitura adquiri de berço, estimulado pelos pais, que me davam livros interessantes para ler, especialmente os de aventura. Mas tenho de considerar que o colégio foi também muito importante. Gostar de Português, Filosofia, Matemática, Química depende muito da empatia com o professor. No Velho Anchieta, tive bons professores, mas sobretudo um, de Português, que, de professor ginasial, acabou tornando-se Secretário Estadual de Educação e, depois, Presidente da Assembléia Legislativa do Estado, o Aírton Santos Vargas. Eu tinha uns 10 anos e morava com os avós. Na minha primeira aula, o jovem Mestre mandou que escrevêssemos no caderno umas trinta palavras que foi ditando, sem explicar como grafá-las: isto fazia parte do tema. A missão que tínhamos era de encontrar sinônimos já na próxima aula, que seria no outro dia, de manhã cedo. Muitas dessas palavras jamais esqueci: preclaro, augusto, insigne, egrégio, conspícuo, precípuo, néscio, apedeuta, papalvo e assim por diante. Como tinha aula de Educação Física à tarde, além de outros temas de casa, restou-me a noite para tentar decifrar o pacote linguístico. Coisa inimaginável nos tempos atuais, de manos, minas, brothers e tipo assim. Não podia contar com os avós nessa empreitada, telefone não havia e muito menos dicionário, que só pude adquirir bem depois. Penso que meus pais tiveram de racionar a compra de material escolar, porque dicionário era item um pouco mais sofisticado para um piá nos primórdios ginasiais. Não consegui adivinhar mais do que umas três ou quatro palavras; recordo que fiquei angustiado, impotente e louco de curiosidade. No outro dia, antes da aula, consegui completar parte do exercício, socorrendo-me de colegas mais apetrechados, que eram escassos. E, na repetição desses exercícios de conhecimento vernacular, empolguei-me com a riqueza dos recursos da língua e adorava garimpar palavras difíceis em novos livros e dicionários. As aulas de latim ofereciam deleite análogo e assim era divertido jogar com frases e palavras, desbravando um novo mundo de vocábulos e ficção. As aulas "puxadas" de francês e inglês acrescentavam desafios e ajudavam a rasgar horizontes no mundo novo da literatura. O Português é uma língua relativamente difícil, por isto mesmo sempre gostei, mesmo não sendo um "expert". Em 1967, na minha primeira estadia em Lisboa, fui pedir informação na rua e, ao final, ouvi um elogio de que falava bem o Português (?!).
Era tempo de mais solidão - sem televisão, telefone e, muito menos, internet - recursos escassos e desafios, mas achava isso quase tão bom quanto brincar de “figurinhas”, botão de mesa, dama, moinho, dominó, xadrez ou Fla-Flu. Supimpa, quando o máximo de prazer alternativo seria acompanhar novelas de rádio - a casa dos avós dispunha de apenas um aparelho.
Esse tempo passou definitivamente. Depois, surgiram ainda outras línguas e dialetos, como o anglo-brasileiro, o juridiquês, o economês, o internetês, só não cito a Língua do "p", pois vingou num universo restrito. O estilo literário da minha geração é basicamente o mesmo e a gente se entende, embora os bem jovens às vezes estranhem. Mas estas novíssimas gerações, em sua maioria, têm dificuldade de assimilar ou apreciar muitos dos nossos textos ou falas: tudo muda, até a linguagem. Às vezes, sentimo-nos como Padre Antônio Vieira discursando para os índios. É uma desagradável sensação de abismo, de queda livre, de incomunicabilidade. A gíria é universal, ou quase isto, serve para o papo do dia a dia, mas o texto é coisa séria, geralmente. É preciso simplificar sem ser banal, escrever com certa simplicidade sem escorregar para o simplório. Mas o que será dos nossos clássicos? Por outro lado, a linguagem dos muito jovens, notadamente a escrita internética, virou enigma para muitos da terceira idade. Quem não permaneceu ligado, definha boiando. O baixo calão de ontem, é fala humorística de desenhos animados pueris, a cena erótica é um evento banal, até de certos filmes infantis; a intelectualidade de antes, é coisa engraçada de "nerd", sem grande repercussão. A linguagem corrente é a da magia, da ficção exacerbada, da velocidade máxima, da palavra curta, dos super-heróis impossíveis e empolgantes, do pânico ultrarradical, da piada escrachada e do sexo arrepiante. O resto é filme antigo. As pessoas continuam doces, inteligentes e realizadoras, mas noutra dimensão ou frequência. Néscios e papalvos? Acho que não, como regra geral, mas todo cuidado é pouco.