Corvos estranhos
Corvos. Estão por toda parte. Cortando os céus com seu vôo barulhento. Reviram e devoram todo o lixo jogado pelas cidades. Desde os interiores mais longínquos, até as cidades mais acinzentadas, desde Tokyo, Kyoto, Osaka e Hiroshima. Em qualquer buraco do Japão: Corvos, pássaros negros de penas brilhantes. Era manhã cinzenta no centro de Nagoya, e os corvos dominavam o Central Park. Sem-tetos japoneses dormiam nos bancos. Iranianos vendiam heroína e haxixe num banheiro público dominado pela merda jogada nas paredes. Brasileiros esperavam o metrô após mais uma noite em Sakae, o bairro dos bares, puteiros, cassinos e boates. E após quase seis anos, lá estava eu de novo. Agora em nova empreitada.
Antes de estudar jornalismo, havia trabalhado por três anos como operário, limpador de fossa e açougueiro em várias cidades japonesas, e já tinha uma boa noção do que encontraria nessa viagem. E também sabia na ponta da língua os problemas enfrentados pela comunidade(90% sem chance de serem publicadas) e, é claro, das consequências e sequelas provocadas pelo expediente de até quatorze horas de trabalho pesado.
Um jornalista brasileiro numa região de grande concentração de brasileiros é ao mesmo tempo policial, ouvidor público e até psicólogo. Às vezes, antes mesmo de levar os problemas até a polícia, eles preferem contar ao jornalista, por sentirem mais confiança em outro brasileiro (que na visão deles pode ter influência maior na burocracia nipônica: ilusão) e com a esperança de ver seu problema resolvido, ou pelo menos divulgado na imprensa. No meu primeiro dia como jornaleiro em Nagoya, pude perceber como as coisas estavam cada vez mais estranhas. Mas como diz Hunter Thompson, o pai do Gonzo Jornalismo, “quando as coisas ficam estranhas, os estranhos viram profissionais”. Sendo assim, desde o início procurei ver tudo a partir dessa óptica.
E com a intenção de mostrar uma mínima parte dessa órbita “estranha”, vou relatar uma ligação que recebi logo no meu primeiro dia na sucursal. Outras histórias vão surgir nessa coluna, e essa foi a escolhida para abrir a série.
8h30
___ Alô, é o jornalista da... na região de Tokai?
___ Sim, sou eu mesmo, quem está falando?
___Não posso dizer meu nome, tenho uma denúncia pra fazer – disse a mulher anônima.
___ Pode falar - respondi.
___Olha só, eu trabalho numa fábrica perto de Nagoya, e não sei mais o que fazer. Tenho um vizinho que é completamente louco.
___ È brasileiro? - perguntei.
__ É sim.
__ E qual o problema dele?
__O cara é um louco total. Não trabalha, fica o dia inteiro trancado em casa e pelo que sei é viciado em internet, cassinos e jogos eletrônicos. Mas o problema mesmo não é esse.
__Pode falar minha senhora - lhe disse num tom seco, pois até então estava achando tudo normal por se tratar de um país como o Japão, e nem imaginava do que se tratava.
__Mas o problema é o seguinte meu jovem, como o cara não trabalha, ele fica em casa cuidando dos dois filhos enquanto a mulher dele está no trabalho. E nesse tempo, a diversão dele é torturar os filhos, que estão com hematomas de arrepiar até médico legista.
Nesse momento, pude perceber que a coisa era mais séria do que eu pensava.
__ E o que ele faz pra torturar os filhos?
__Faz de tudo, coisas que você nem imagina. E quando estou em casa durante o dia, passo o tempo todo ouvindo gritos horrorosos das crianças. O filho mais velho, que deve ter uns sete anos, quase nem tem mais cabelo, já está no couro, de tanto que ele puxa. Mas você tem que ver quando ele vai buscar as crianças na escola. Ele vai de bicicleta, e o garoto junto com a irmã de uns cinco anos, tem que ir correndo de mochila ao lado dele. Por causa da pressa em voltar pro computador. E durante esse caminho, ele vai gritando e batendo nas crianças pra eles andarem mais rápido.
Sem saber o que fazer perguntei -
__A senhora já foi à polícia?
__Que polícia que nada? Você acha que eles vão fazer alguma coisa? Japonês é tudo louco, você acha que eles vão resolver – me disse indignada. Eu é que pergunto, o que VOCÊ vai fazer?????
__Olha minha senhora, eu entendo o problema, mas não posso escrever sobre isso. O sistema japonês, você sabe como é, pra eles, problemas dentro de casa não lhes interessam, ainda mais quando se trata de uma casa de brasileiros – expliquei.
__Mas você deve fazer alguma coisa!!!! Você é jornalista, tem que por isso no jornal!!!!!
Danilo Nuha - Japan /04 de setembro de 2oo6, segunda-negra