Crônicas terminais V

Acordo depois de uma boa dose de cafeína, quase que na veia. Me olho no espelho e demoro para me reconhecer, já não sou quem eu era ontem, já não penso como ontem. Me sinto podre, exposto. Estou na frente do meu espelho, no banheiro de meu minúsculo apartamento, me sinto só, único no mundo, assim como cada floco de neve nessa nevasca que cai sutilmente sobre minha cidade. Por um instante sorrio de maneira forçada, vejo meus olhos vermelhos, meus dentes amarelados pela falta de higiene. Sou um nada, vim do nada, e tenho certeza que vou para o nada.

Vejo pela simples e pequena janela do 6° andar um inseto pousar na pia suja. Uma mosca. Enorme para o ar pesado da cidade. Pego minha toalha imunda de rosto e a jogo na pia e acerto o infeliz inseto.

Ela aparece sem uma das asas, anda rápido, mas parece perdida, eu olho com um estranho e sádico prazer, ela parece sofrer. Pego minha pequena tesoura de aparar pelos do nariz e corto uma de suas perninhas e ela começa a mancar, sorrio sem forçar agora. Arranco outra, e eu rio de leve, mais outra e começo a rir mais alto e assim vou até deixa-la com uma só. Já estava gargalhando, até que penso: “Será que ela, a mosca, acredita em deus? Aliás, será que ela pensa?”.

Enfim, arranco a ultima patinha da infeliz criatura. Agora me sinto o próprio deus, mesmo por um breve instante, tenho o poder de uma vida, até que “opa” matei a coitada. Então deixo de sorrir e penso alto com meus botões:

“Acho que matei meu ultimo pingo de humanidade”.

Saio do banheiro, estou sujo, descabelado, com bafo de cafeína. Vou até a sala minúscula, pego minha lata de cerveja quente de ontem e digo:

“Merda”.

Minari
Enviado por Minari em 10/05/2010
Reeditado em 29/08/2010
Código do texto: T2247630
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