Cala-te boca!
Marcelo e Zacarias eram amigos de infância. Foram criados no mesmo bairro, frequentaram as mesmas escolas e dividiram suas amizades com os mesmos colegas. Divergiam apenas num ponto: um torcia pelo Flamengo, outro pelo Vasco. As discussões em torno das performances de seus clubes não chegavam a afetar o apreço nutrido um pelo outro, nem mesmo quando o Vasco batia o rubro-negro da Gávea por escores dilatados, o que fazia do Marcelo um sofredor resignado.
Os garotos passaram a fase adolescente sem traumas de qualquer espécie. Os pais eram bem casados e mantiveram a união em clima de eterna felicidade. Essa a razão. Os meninos aproveitaram os bons momentos da vida jogando vídeo-game, despreocupados com a violência dos “inocentes” divertimentos; praticaram futebol e assistiram a filmes nos cinemas dos shoppings, onde se fartavam de hambúrguer servido pelo McDonald´s. Ali também experimentaram os efeitos dos dardos inflamados de Cupido, depois de atingir as meninas-moças, suas apaixonadas namoradinhas.
Verdade seja dita, os rapazes não negligenciaram os estudos. Cada qual seguiu o seu rumo, bem planejado. Marcelo formou-se em medicina, doutorado em cirurgia cardíaca; Zacarias preferiu seguir a atividade do pai, empresário, após herdar-lhe substanciosa fortuna.
O médico Marcelo e o empresário Zacarias eram bem relacionados na sociedade local. Todos os eventos sociais contavam com suas presenças, quando solteiros. Depois de casados, faziam-se acompanhar das respectivas esposas. A mulher do Zacarias, deslumbrante loira de corpo escultural, sorriso de Mona Lisa – La Gioconda, destacava-se no ambiente festivo, despertando os instintos os mais variados: admiração, inveja, ciúme e, da parte dos homens, desejos inconfessáveis.
Todos lograram êxito em suas atividades empresariais. Marcelo comandava o próprio hospital, um excelente nosocômio com duzentos leitos oferecidos a pacientes que fugiam dos estabelecimentos públicos de saúde, por motivos óbvios. Os negócios de Zacarias iam muito bem, obrigado. Nada tinha a reclamar como fornecedor do governo, cliente abastado, de poucas exigências, exceto quanto ao recebimento de propinas, cobradas por funcionários desonestos.
Se Zacarias não se queixava quanto aos resultados de suas milionárias operações realizadas com o governo, muito lucrativas, por sinal, esforçava-se para suportar as atitudes de um sócio que contratara para o exercício de certa atividade. O homem que compartilhava com ele de lucrativo empreendimento era desorganizado, perdulário e de difícil convívio.
Certo início de noite, em conversa com Marcelo, assíduo frequentador de luxuosos e aconchegantes bares da cidade, Zacarias pensou em confidenciar algo ao amigo. Após a segunda dose do Royal Salute, fino scotch produzido para celebrar a coroação de sua Majestade, a Rainha Elizabeth II, disse:
- Marcelo, estou me separando...
- Ouça o que penso disso – interrompeu-lhe o atento interlocutor, como se adivinhasse o que o outro desejava dizer: Você faz muito bem! Aquela sua mulher é um piranha; não merece a mínima consideração. Sempre achei que ela não lhe merecia. Trata-se de uma prostituta, sem caráter... uma vadia de marca maior. Nas reuniões sociais que frequentamos, ela dá em cima de todo mundo. Até a mim, quis seduzir. O melhor a fazer é livrar-se daquela vagabunda!
-... Separando do meu sócio – complementou Zacarias, após ser interrompido ao iniciar a confissão que pretendeu fazer ao amigo.
As doses do Royal Salute não foram suficientes para Marcelo encontrar meios de se redimir do vexame. Olhava para Zacarias, sem saber onde fixar a visão. O amigo estava atordoado com a notícia, e naquele momento passava a mão direita na testa, como a procurar alguma saliência incômoda.