Partilha macabra

Maria atendia pelo epônimo de Maroca e Divanilda pelo epíteto de Divina. Eram irmãs de sangue. Para a sociedade preconceituosa, não passavam de “moças velhas”, por serem solteironas e donzelas. Muito religiosas, faziam parte da irmandade Filhas de Maria.

Todos os dias as irmãs assistiam a missa celebrada pelo padre Constantino, um homem de Deus; assim como elas. Trajavam vestidos longos, pregueados, com babados ao redor do pescoço; na cabeça, usavam véu de cor preta, rendado; cada uma conduzia nas mãos o missal e o rosário, esse, manuseado enquanto caminhavam pelas ruas da cidade. De suas bocas, nada se ouvia. Viam-se apenas o abrir e fechar dos lábios, em santa comunhão com Deus.

Queridas dos citadinos, por serem muito religiosas, de caráter exemplar e de abnegada atenção aos pobres, Maroca e Divina retribuíam o afeto recebido com orações intercessórias ao Criador. Estavam sempre à disposição de quem delas precisasse na pequenina cidade de Monte Horebe.

As orações das Filhas de Maria pareciam chegar ao Céu com facilidade. Exemplo disso eram a recuperação milagrosa dos enfermos atendidos e a disposição da comunidade para tê-las consigo quando as agruras da vida lhe batiam às portas.

A caminhada até a igreja do padre Constantino era feita a pé; nas mãos, levavam o missal e o rosário de contas gastas pelo uso contínuo. Nas cabeças, os véus de renda preta simbolizavam a tristeza pela morte do Senhor, a quem amavam esquecidas de que Seu martírio fora necessário à salvação da humanidade.

Há quem não entenda o significado da crucificação de Cristo.

Quando iam à igreja, seguiam sempre o mesmo itinerário de ruas estreitas e pouco arborizadas. No percurso não havia como evitar a calçada da necrópole, essa sim, sombreada por frondosas árvores frutíferas, entre elas, mangueiras decenárias.

Os adolescentes da cidade, desocupados, com disponibilidade de tempo excessiva, desmotivados com os estudos recomendados por pais negligentes e professores despreparados, passavam horas em cima de mangueiras e goiabeiras colhendo frutas amadurecidas, sob vigilantes olhares de além-túmulo.

Os garotos repartiam as colheitas com equidade.

Ao final de tarde nublada, iluminada por persistentes relâmpagos, despertada por trovões estridentes e amedrontadores, as irmãs Maroca e Divina regressavam da igreja, depois de prolongadas orações. Ao passarem pela calçada do cemitério, ouviram vozes que diziam:

- Esta é minha, esta é sua... Esta é minha, esta é sua...

Por alguns instantes, escutaram a partilha que julgaram advir do sobrenatural:

- Esta é minha... Esta é sua...

Amedrontadas, correram à casa paroquial. Ali, encontraram o padre Constantino absorto em sua devoção. Disseram-lhe que, de passagem pelo cemitério, perceberam vozes que atribuíam a Deus e a Satã, repartindo almas entre si. Elas, particularmente, lamentavam o destino das escolhidas pelo Demo, por não terem, quando chamadas à Verdade, renegado o vil pecado em que sempre viveram.

As santas criaturas, acompanhadas do homem de Deus, foram verificar o que de fato acontecia na cidade dos mortos. Ao chegarem, ouviram as vozes soturnas:

- Esta é minha... Esta é sua... Esta é minha... Esta é sua...

Três grandes goiabas haviam caído do lado de fora, antes da chegada dos religiosos.

- E as três, que estão lá fora? – perguntou um deles.

- Ah, essas são minhas! Irei buscá-las agora! – disse o mais esperto.

Maroca, Divina e o padre Constantino não esperaram para saber quem os havia escolhido.