Crueldade extrema
Armando de Souza, conhecido torcedor do Flamengo, mora na Gávia, região que abriga moradores de poder aquisitivo superior à média dos brasileiros comuns.
Armandinho, como é tratado pelos amigos, reside em casa confortável, de dois pavimentos, composta dos seguintes cômodos: vestíbulo, salas de estar e jantar, escritório, quatro suítes e mezanino onde assiste aos jogos de seu time predileto, em amplo telão, componente do home theater que exibe com orgulho aos visitantes.
A área externa da casa é ornamentada por ricos jardins, com piscina de águas azuis em forma de coração, churrasqueira e espaços para realização de festas em que costumeiramente se confraterniza com amigos, a maioria adeptos do clube de sua paixão irrefletida.
Três empregados cuidam da pequena mansão do Armando; um deles é do sexo masculino, responsável pelos serviços de jardinagem e manutenção de dependências carentes de consertos. Os cachorros, dois lindos exemplares da raça poodle, são tratados semanalmente por veterinário que os atende extemporaneamente, caso necessitem.
Os serviçais, bem remunerados, nem sempre são tratados com respeito e dignidade. A esposa de Armandinho, vaidosa senhora de quase quarenta anos, formada em Direito, vez ou outra exorbita de sua autoridade. Esquecida dos princípios de cordialidade, comuns ao marido, não raro trata as empregadas com excessiva arrogância, reclamando-lhes as faltas que poderiam ser dissimuladas, com vistas a manter a boa convivência. Os filhos do casal associam-se à mãe e quase sempre se excedem nas reclamações, nos xingamentos, no maltrato a pessoas humildes que, embora necessitem do emprego, merecem respeito e cordialidade.
Doutora Marisa é impulsiva; quando um empregado comete algum deslize, principalmente se não trata os cachorrinhos com o devido amor canino, canino não, filial e humanitário, o caldo entorna. Marisa não perdoa o mínimo, principalmente se a cadelinha Letícia não está sempre bem escovada e com a fitinha rosa presa no alto da cabeça. O Lulu deve estar com a coleira dourada, presente da madrinha, dona Celeste, quando este completou seu terceiro aniversário, em festa memorável que contou com a presença de numerosos cães de raças nobres, pertencentes aos amigos.
Um dia, para tristeza da doutora Marisa, quando abriu a tampa do forno do fogão Loffra, objeto de sua exibida admiração, encontrou a cadelinha Letícia bem torradinha, no espaço onde antes assara e dourara as mais finas carnes do seu saboroso cardápio.
Marisa, como advogada militante, conhece os caminhos legais. Após atribuir a Joana o ato vil praticado à Letícia, pobre criatura, levou o caso à delegacia mais próxima.
O delegado, homem forte que transparece autoridade excessiva, perguntou a assustada empregada se ela confessava o crime. Joana não negou a autoria. Cabisbaixa, ouviu do doutor delegado:
- Você matou a cadelinha, assim, tão friamente?
Ao que Joana respondeu:
- Não, doutor, o forno estava ligado há muito tempo!