III Festival América do Sul revela descaso com artistas locais
Enquanto tecnocratas do governo estadual e seus convidados descansam em hotéis de luxo. Servidos do melhor uísque importado, e empanturrando-se com carne de jacaré ou filé de pintado, um senhor negro, magricela, com as roupas sujas e encharcadas, treme de frio ao tentar dormir sob o chão gelado da Praça Generoso Ponce, em Corumbá.
Nesse dia, 22 de maio de 2006, os termômetros marcavam oito graus. E tratando-se do calor dantesco que é a marca registrada da cidade, ver suas ladeiras cobertas pela neblina nesse atípico ambiente de frio, causava um aspecto de filme surreal sobre o paralelepípedo.
A figura do homem, deitado no chão, e sem nada que lhe amenizasse a friagem, passava batido por todas as pessoas que consumiam badulaques e souvenires nos stands de artesanato do III Festival América do Sul.
Mas, mal sabiam eles, que o corpo jogado no meio da praça, era do artesão Cássio de Souza, artista responsável pela construção dos bonecos gigantes que há três anos decoram a “cidade branca” durante o evento.
Logo depois disso, pouco mais de onze da noite, em um barzinho da Avenida Dellamare, vejo um homem se aproximar e dizer:
_Eu não gosto de vocês!
Na hora em que ouvi essa afirmação, fiquei um pouco assustado e, antes que respondesse, ele disparou:
_Eu não gosto de vocês! – repetiu novamente.
_Eu amo vocês!
O homem que tinha feito essa inventiva abordagem era o próprio Cássio, que havia levantado do chão para procurar um boteco. Ele estava atrás de um trago de cachaça que anestesiasse o resto da noite fria.
Logo depois da brincadeira, puxei assunto e, ainda nesse momento, não sabia que se tratava de um artesão. Foi quando ele me contou que há três anos decorava o Festival com seus bonecos gigantes: sem ganhar um centavo do governo, “neca de pitibiribas”.
_De vez em quando eles me davam o almoço, como aconteceu hoje. Mas é porque eu peço, se não era capaz de não ganhar nada, mas nada mesmo, nem mesmo consideração – comentou Cássio, antes que eu o chamasse para se sentar na mesa. Perguntei se ele estava com fome, respondeu que sim, então pedi algo para que comesse enquanto conversávamos.
Cássio Rodrigues de Souza nasceu em 1957, no bairro de Cascadura, Zona Norte do Rio de Janeiro. Saiu de lá ainda jovem, passou por algumas cidades até chegar em Manaus, onde aprendeu o ofício de mecânico, tanto de barcos quanto de carros. Sempre antenado, também aprendeu marcenaria, foi bicheiro e torneiro mecânico. Desembarcou em Corumbá em 1974. Segundo ele, sobrevive fazendo todos os tipos de bicos e, quando surge alguma oportunidade, conserta os barcos que estragam no porto geral da cidade.
Esse ano, o artista está expondo quatro bonecos, que estão espalhados pela Praça Generoso Ponce. Eles medem aproximadamente quatro metros, e foram construídos com pano, algodão e taquara. De acordo com seus cálculos, em cada boneco, ele gasta cerca de 270 reais, que saem do próprio bolso.
_ Passo a necessidade que for, mas nunca vou deixar de construir os bonecos. Não tem como a gente controlar um impulso que vem de dentro. Isso é arte.
Pergunto a Cássio o que ele acha de tanto dinheiro sendo gasto deliberadamente, a torto e a direito, e também dessas pessoas com a credencial da organização do Festival comendo do bom e do melhor, enquanto ele, ali sozinho, tremia de frio dormindo embaixo de seus bonecos no chão gelado de uma Praça. A resposta do artista foi um choro quieto e vergonhoso, uma espécie de grito silencioso pela situação de inoperância dos governos e o não reconhecimento da arte independente.
_Já estou acostumado com isso, todo ano é a mesma coisa. Mas os meus bonecos e a minha vontade de fazer arte é muito mais forte que toda essa mesquinharia política e esses camaradas de credencial no peito. - disse o artista, logo depois de limpar as lágrimas. Seu rosto mostrava uma indignação latente, mas sem nenhuma raiva desse descaso com ele próprio e com a cultura local.
Cássio é mais um, entre os milhares de artistas independentes que sobrevivem sem lamber o saco de ninguém, sem paternalismos, indicações, nepotismo ou favorecimentos. Pessoas como Cássio, é que são os verdadeiros revolucionários, rebeldes incansáveis que desenvolvem toda sua potencialidade artística sem precisar roubar o dinheiro do povo. Dinheiro esse que vem camuflado por incentivos culturais, sempre disfarçados com nomes e siglas “engana-trouxas” como FIC, Lei Fulano de Tal de Incentivo à Cultura, Lei Não sei o quê em prol da arte blá-blá-blá, ou Lei pó-pó-pó de trá-lá-lá do artigo bé-bé-bé do ano há-há-há.
É mais ou menos como diz João Antônio, o mestre brasileiro da literatura marginal: “entra governo e sai governo, e só mudaram as picas, o cu continua o mesmo”.