Música brasileira é pano de fundo para os skylines em Tokyo
Nas maiores cidades do mundo, no começo da manhã e no final da tarde, as pessoas já se acostumaram com a chamada hora do “rush”. Ônibus, trens, metrôs, ruas, estradas, tudo fica entupido: um mar de gente. Mas, numa cidade como Tokyo, onde quase 13 milhões de pessoas estão amontoadas, esse rush parece que nunca vai terminar. Às oito da noite, entrei num trem (ainda cheio) no bairro de Kamata e fui até à estação de Shimbashi, onde embarquei num metrô rumo a Omote-Sando.
Entre os chamados bairros boêmios da capital japonesa, estão os famosos Guinza (conhecido pelas suas lojas sofisticadas), Shibuya (território de jovens vestidos com roupas quase espaciais e acessórios pra lá de futurísticos) e, por último, Roppongi (uma babilônia de centenas de bares, inferninhos, pubs e boates. É o bairro preferido dos turistas que visitam Tokyo). Existem também os chamados bairros em ascenção, que devido à grande procura e lotação dos tradicionais, começaram a se tornar uma alternativa para quem já viu (e fez de tudo) na megalópole japonesa.
E Omote-sando é um deles.
Essa região começou a se tornar conhecida em todo mundo pelas apresentações de jazz, blues, música africana e muita bossa nova e MPB. Nesse sábado, 29 de junho de 2006, a casa de shows Blue Note, registrou o encontro antológico entre Toninho Horta, um dos fundadores do Clube da Esquina, e Robertinho Silva, talvez o maior baterista brasileiro em atividade. Juntos, os dois vão completar quase 40 anos de amizade, na música e na vida. E para acompanhar a dupla, estava o guitarrista estadunidense Kurt Rosenwinkel e o baixista Ben Street.
O Blue Note tem uma estrutura que faz jus aos setenta e cinco dólares cobrados pelo ingresso. Filas, tumultos e imprevistos são palavras que não existem por lá. Caruso, um repórter carioca que trabalha no jornal, havia feito minha reserva no meio da semana pela internet. E, como bom brasileiro, desconfiei imediatamente da funcionalidade da operação. Mas, assim que entrei no lugar, nem precisei falar meu sobrenome, e a atendente me deu uma plaquinha de número cinco e pediu para que eu esperasse na ante-sala. Em menos de três minutos, o som do microfone anunciou minha vez. E assim que entrei no ambiente do show, um funcionário me disse que poderia escolher entre os lugares que estavam vazios e, acredite (apesar da casa estar quase cheia), a maioria deles estava na frente do palco. Então escolhi um que ficava a menos de cinco metros dos músicos.
Quando começou o show, me senti como se eles estivessem tocando na sala de uma casa e eu sentado no sofá. Logo de cara, Toninho e Cia começaram atirando de “A Felicidade”, composição de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, bastante aplaudida pelo público japonês. Nessa música, Robertinho tocou (seria essa a palavra?) cajón e percussão. E para quem está acostumado a ver Toninho somente no comando da guitarra, ele soltou a voz em várias músicas, entre elas “Felicidade”. O público japonês talvez seja um dos mais diferentes de todos, eles ficam num silêncio sepulcral e quase não bebem durante o show. O receio de fazer um barulho é tão grande, que até para levantar o copo da mesa eles pensam duas vezes. Talvez seja por isso que João Gilberto sempre aparece por aqui (Tokyo é um de seus lugares preferidos para fazer show). Inclusive, foi no Japão que ele comemorou os 40 anos do disco Getz/Gilbeto. Essa apresentação realizada em 2003, virou o disco “João Gilberto in Tokyo”, lançado em 2004.
Toninho também executou suas próprias composições, entre elas “Pedra da Lua”. E o guitarrista Kurt Rosenwinkel participou do set list com uma música de sua autoria chamada “Kama”, bem no estilo jazzístico norte-americano. Mas as canções que mais eram esperadas, e claro, as que o público mais mostrou entusiasmo foram com as músicas que fizeram a história do Clube da Esquina.
Assim que a platéia ouviu os primeiros acordes de “Travessia” (Milton Nascimento e Fernando Brant), já começaram a aplaudir como se fosse uma música totalmente japonesa, pois até a letra alguns se arriscavam a cantar entusiasticamente (e ao mesmo tempo erradamente). Mas o que mais me chamou atenção, foi a emoção com que alguns japoneses ouviam a música.
Entre uma música e outra, Robertinho, cariocamente, dava pequenos goles num copo de cerveja deixado pela garçonete.
O resto da turma bebia água. Quando se preparava para mais um gole, Robertinho ainda sem saber que éramos brasileiros, olhou para a mesa onde eu estava sentado com um primo e disse: “Ah, tem que beber um golinho né”.
___Ainda mais pra quem nasceu no Realengo – respondi.
Imediatamente ele começou a rir, olhou para Toninho e disse:
___ Olha aí rapáiz, os homi mandaram o delegado.
Depois da pausa para a cervejinha, o ataque musical recomeçou com mais canções do Clube da Esquina. A banda ainda tocou as antológicas Courage e Rio Vermelho (Milton), Clube da Esquina 2 (Lô, Márcio Borges e Milton) e Vera Cruz (Milton e Márcio Borges), com direito a solo de Robertinho Silva, que fez com que a casa quase viesse abaixo com a empolgação da platéia diante das habildades do mestre. E não é por a caso que Robertinho foi o cérebro percursivo (e baterista) do lendário disco Missa dos Quilombos, projeto de Milton, Pedro Tierra e Pedro Casaldáliga, em 1981.
Ao final da apresentação, o público aplaudiu os músicos por cerca de cinco minutos. E no ano em que se completa trinta e cinco anos da gravação do disco Clube da Esquina 1, lá estavam os dois de novo, ainda melhores. Para eles, parece que o processo de envelhecimento acontece ao contrário, a música e a vida de Toninho Horta e Robertinho Silva, está cada vez mais cheia de “sentimento, coração, juventude e fé”.
Toninho Horta - Antônio Maurício Horta de Melo nasceu em Belo Horizonte, no bairro Floresta, em 2 de dezembro de 1948. Filho de Prudente de Melo, mestre-de-obras, e Geralda Magela Horta de Melo, funcionária pública. Seu pai tocava violão e a mãe, violão e bandolim. O primeiro músico da família foi o avô materno, João Horta, funcionário da Central do Brasil que montava uma banda em cada lugar em que morava. Paulo, um de seus cinco irmãos, foi quem mais o incentivou para música. Aos 10 anos, Toninho começou a tocar violão e, aos 13, fez sua primeira composição, “Barquinho Vem”. Aos 19 anos, iniciou a carreira de músico profissional tocando na noite. Na adolescência, conheceu Milton Nascimento, Márcio e Lô Borges e Beto Guedes – aos dois últimos ensinou harmonia. Mas foi a partir do Festival de Belo Horizonte, em 1969, que começou a união musical do grupo. No final dos anos 60, foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou com artistas como Elis Regina. Em 1972, organizou arranjos de base, tocou guitarra, baixo e percussão no disco Clube da Esquina. Após 10 anos nos EUA, em 1999 retornou ao Brasil com uma carreira internacional consolidada.
Robertinho Silva - Nasceu no bairro do Realengo, no Rio de Janeiro (RJ), em 1941. Descobriu a percussão logo na infância e foi o primeiro músico da sua família. Seu primeiro instrumento foi o tambor, que tocava em um terreiro aos oito anos. Autodidata, perto dos 12 anos, começou a aprender bateria, apoiado no método do baterista norte-americano Gene Krupa. Também aprendeu a tocar trompete. Em 1965, quando tocava na boate Drink, no Rio de Janeiro, conheceu Wagner Tiso, que o introduziu à harmonia e à sonoridade da música mineira. Pouco depois, conheceu Milton Nascimento, de quem foi um dos percussionistas mais constantes. Em 1969, gravou o primeiro disco com Milton no Estúdio Odeon. Em 1971, participou da gravação do primeiro disco “Clube da Esquina”. Entre 1970 e 1973, integrou o grupo Som Imaginário e nesse período foi um dos mais requisitados músicos brasileiros, tendo trabalhado com nomes de peso como Gilberto Gil, Toninho Horta, João Donato, entre outros. A partir de 74, consolidou uma carreira internacional e tocou com grandes nomes do jazz mundial. Hoje, dedica-se à pesquisa de ritmos regionais brasileiros, a projetos musicais com seus filhos e ao Centro de Percussão Alternativo Robertinho Silva, escola de música que criou em 1997.
(Fonte: Clube da Esquina)