É melhor o barulho das ruas

Minha filha caçula envolveu-se em um acidente de trânsito. Um ônibus de uma empresa concessionária de transporte coletivo de passageiros, dirigido por motorista irresponsável, talvez alcoolizado, abalroou o pesado veículo em seu frágil automóvel. A colisão estragou a lateral direita, danificou as portas dianteira e traseira, o espelho retrovisor e um dos pára-choques.

Ao insinuar que o motorista estaria alcoolizado, não quero ser preconceituoso nem tampouco desabafar minha ira em face dos prejuízos sofridos. Não deverei, também, ser considerado maldoso por sugerir que o profissional do volante fizesse uso de bebidas alcoólicas durante o trabalho. Asseguro que incontáveis vezes presenciei ônibus urbanos estacionados em lugares impróprios, aguardando que seus condutores bebessem a última dose de cachaça.

Sem o carro disponível, entregue à oficina mecânica para conserto, minha filha passou a utilizar o meu automóvel. Ela precisa de um meio de transporte eficiente e rápido para ir ao trabalho, ou dizendo melhor, aos diversos lugares onde exerce a profissão de médica. Um só emprego, infelizmente, não é suficiente para satisfazer suas despesas mensais. Por ganhar pouco, essa colega de Hipócrates e de Esculápio, após seis anos de faculdade, em tempo integral, e depois de três outros fazendo residência médica, especializando-se em cardiologia, precisa se deslocar para vários hospitais diariamente.

Ao contrário de outras categorias, como a de auditores fiscais, por exemplo, o médico tem salário ridículo. E ainda é vilipendiado quando seu trabalho se torna menor, decorrente de precários equipamentos e instalações utilizados nos nosocômios públicos.

Pois, bem, durante muitos dias, o “sem-carro” fui eu. O automóvel me faz falta. Embora aposentado, sem compromisso com o trabalho formal, necessito efetuar pagamentos, fazer compras e cumprir as variadas tarefas de administrador doméstico, que exerço sem nenhuma escolha (coisa de velho).

Em casa, com pouca coisa a fazer e muito tempo disponível, exercitei a meditação. Pensei nos anos vividos, alguns com extrema dificuldade, outros passados simplesmente para fazer valer a força do calendário. Contemplei as vitórias, as muitas derrotas, as alegrias e tristezas passadas; somei, subtraí, dividi e finalmente cheguei a um resultado positivo: estou no gozo de minha saúde física e mental, na posse de meus bens e no convívio da família; ajudei financeiramente alguns de minha parentela, estou ativo, embora alquebrado pelo peso dos anos; já sinto o cansaço impedir feitos antes julgados importantes, de que cheguei a me orgulhar e a senti-los prazerosos. Graças a Deus, não ostento marcas indeléveis a lamentar.

A dignidade é o grande bem de que não abro mão, pensei, adicionando às minhas reflexões, o seguinte: Os dias vindouros serão breves ou extensos? Sadios e felizes? Quem me dera uma resposta positiva! Gostaria de terminar minha existência com dignidade, sem depender fisicamente de ninguém.

Nessa hora, tive medo da morte. Corri para o espelho. Olhei-me com redobrada atenção, perscrutando o menor sinal de fadiga, de doença oculta, qualquer insinuação do fim dos meus dias. Estava velho e tudo poderia acontecer, sem avisos. A um chamado do Pai, não se pode faltar. Lembrei-me dessa hora pela qual todos passaremos. Imaginei a mulher, os filhos, os netos, os parentes mais chegados sendo deixados para nunca mais receberem de mim um beijo, um cumprimento, um abraço carinhoso e sincero. O medo cresceu. O peito doeu. Os olhos arderam...

Enfim, superei a forte emoção. Saí diante da imagem refletida na lâmina espelhada e fui atender ao telefone, que toca estridentemente. Era da oficina. O carro de minha filha estava pronto. Iria dispor do meu automóvel novamente. Não precisaria mais ficar em casa, sozinho, sem o barulho das ruas, pensando em coisas desagradáveis. A solidão entristece, faz o pensamento voar em desagradáveis conjecturas.

É melhor o barulho das ruas, por mais ensurdecedor que seja!