A MADRUGADA DE CLARICE LISPECTOR

(20.01.2010)

À Carmem Hanning

Por me confiar, ainda germinante,

gotas nutridas de intenso amor e respeito à arte literária.

“Faz de conta que tudo que ela tinha não era de faz de conta”

(Clarice Lispector)

1 Tudo mudou. Um acidente parou a estrada. Eis que um esperto me toma acintosamente o lugar no rami-rami engarrafado, quase a me rasgar o carro. Ao vê-lo com sua família o identifico: o “canalha” de Nelson Rodrigues; capaz de passar a mão na bunda da cunhada durante um velório. Veio com a repulsa uma pulsão extrema por escrever sobre aquilo. Consequência: uma sequência de textos que batizei, em minha humilde ousadia, de “Ensaios Crônicos” (na coluna Patuvê): interpretações inspiradas em artistas e suas obras.

2 Comecei com Nelson e passei a adotar o número no começo dos parágrafos, em sua homenagem (artifício que muito usava). Seguiram-se outros, em tempo à inspiração. De repente, encalhei-me em Clarice Lispector: não conseguia fazê-lo. Posto que não se trata de um trabalho acadêmico. Mas, do meu sentimento em relação à obra e ao artista em questão.

3 Finalmente, meses depois, numa madrugada de insônia, levantei-me da cama, liguei o notebook e joguei todas as minhas emoções em letras sem vírgulas, palavras sem sentido e frases sem rumo. A angústia aflorou-me de tecla à tela.

4 E o que é angústia senão o dizer não a não fazer nada? “Passei a minha vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente.” Lia e buscava, assim, o meu expressar de seu interior inequívoco, da riqueza infinita que a paralisava “vagando de um lado para o outro, dentro de si mesma”: e haja espaço, em se tratando de Clarice Lispector.

5 “O que é um espelho?”, continuava. “É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio... esse alguém percebeu o seu mistério de coisa.” Uma pancada! A presença no vácuo de um vazio tão sufocante que se é capaz de respirar o suportar dessa ausência. Opor opostos. Tirar do cotidiano a variável exógena. O sim pelo não e o não apelo sim. Clarice enfim sim me arrebatou por completo.

6 E eis que surge, nesta mistura de estudo e entrega, a vida: a mulher inexorável capaz de habitar no homem mais machista, na ousadia de o arrancar pelo avesso e o fazer enxergar melhor. “Quem sabe de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem!?” Sua Janaína mostra-me nosso temor socialmente apavorante de sequer cogitar ter uma alma materna a nos manter o último resquício desde face à luz, na miopia de tanta informação.

7 É preciso ser homem o bastante para ser mulher o suficiente a entendê-la. Lendo-a e a sentindo percebo sermos, homens, o espírito de repressão na própria alma, na física ilusória da pauduressência que tanto nos torna impotentes ante a feminilidade que lhos ergue. Ora, como falo sem que haja um resquício de mulher para o dizer? Como sabê-lo sem essa antítese íntima? Ao existir sendo “sempre ela mesma e, não obstante, jamais a mesma para sempre”, como um rio, não seria Clarice Lispector a Janaina a nos habitar? “Por que (essa) liberdade ofende?” "Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso."

8 Não posso. Não possuo. Essa não é a crônica sobre Clarice. É a crônica sobre a crônica sobre Clarice. “Deitada em minha rede com o livro sobre meu colo em êxtase puríssimo... não sou mais aquela menina com seu livro, mas uma mulher com seu amante...” E sobre cada momento em que sua paisagem íntima e ambígua me deixou com o “coração entre estômagos e intestinos”.

9 Eis que minha fragilidade masculina é completamente dominada por sua fêmea força Gaia, Claríssima. De todos os seus ‘sins’ em angústias vitais de um ‘não’ sem pecados; onde o ‘sim’, puro solo simplesmente, simplesmente não afirma nada; não simplifica nada e esclarece tudo. Ainda que inaudível. “... a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.”

10 Sua liberdade pouco ousada entre escritores dá cria a significados, abstrai vírgulas e não trai múltiplas interpretações. Por vezes, repete exaustivamente um termo até que este deixe de ser ele mesmo, perdido do vínculo convencional da combinação de letras, para ser exposto pela impossibilidade mágica e tornar-se tão neutro a ponto de significar tudo. Incluindo o seu significado original. “Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada.”

11 Por fim, estou extasiado. Arde em meus olhos a tela da manhã e acordo à convenção cotidiana. No entanto, sinto-me em seu íntimo ao me sentir íntimo seu. Como se falara não sobre ela, mas de quem somos no achado momento de sua leitura. A tocar-me como uma fada em minha solidão cibernética, a sua angústia solitária.

“Mas os ovos se haviam quebrado (...) e o mundo se tornara de novo um mal-estar”