Paiê. Do berço me espiam dois olhinhos, os braços apontados em minha direção. Corro buscá-la, abraçá-la, infinitos beijos e apertos, cantos e risos, e assim é o início diário de mais um dia.
 
E minha convicção? A sentença de pedra que, a exemplo de Niesztche, proferi? “Filhos, não quero tê-los, jamais os terei”. Como tudo que digo é resultado de uma reflexão, de muita reflexão, da impressão de leituras, do que me fica das conversas, do que aprendo dos exemplos, que Hugo afirma não ser a melhor coisa da vida, mas a única, das análises e exercícios de futurologia, explico como cheguei a esta afirmação.
 
Somos humanos, temos de crer nisto. Somos animais, somos espécie, por mais evoluída (os naturalistas podem achar que menos) que seja esta espécie, funcionamos como todas as demais da fauna terrena, nosso impulso primordial é a perpetuação. Com sete bilhões de pessoas habitando, neste exato momento, este mundo, a raça humana pode dispor de mim para sua continuação (imaginem, neste mesmo exato momento, quantas crianças estão sendo geradas, nas alcovas do mundo afora).
 
Descartado este primeiro motivo, o fundamental, o segundo, existencial, vai-se fácil. O desejo de ter filhos é o ápice de nosso egoísmo, precisamos de alguém para incutir nossos valores, para ser a nossa imagem e semelhança, para realizar nossas frustrações. Eu sou tão egoísta, que nem isto quero partilhar.
 
Pronto! Filhos, melhor não tê-los! E eu parava por aí a leitura do Poema Enjoadinho. Mas tive uma filha, e façam-me um favor, não queiram entrar neste mérito, vasculhar a história, o que acontece em uma cama ardente, cabe só a quem se incendeia.
 
O que está posto agora é, o que virá? O mundo continua sua degradação (lembram-se, eu dizia há vinte anos atrás que da Patagônia à fronteira norte do México seria apenas uma única favela – e será – com pequenas ilhas de civilidade - será?- , e o jardim amazônico devidamente internacionalizado), o homem cada vez mais vil, o tal vil metal que cada vez mais poucos vêem, a superstição e a fé mística avançam mais que o conhecimento científico, embora este se multiplique à velocidade dos ultra-mega-super-giga-bytes.
 
Este é o mundo e este é o conhecimento que darei para Marina. É justo? Hoje ela está a crescer e aprender, coordenação motora, inteligência espacial, o que mais encanta, e diverte, e necessário, é o aprendizado da fala, da língua. Já evoluiu muito, nossa linguagem é quase comum: o que para mim é bola, ela chama de bóia; a chupeta é peta, blusa é uda; você é ôce (reminiscências de Ibitinga); Chico é kiko, carro é carrô, travesseiro, amplitude, gnóstico, licenciosidade, constitucional, para ela é tudo arrrg, urghh, oooorg, ergggh.
 
O que fará ela quando souber que o computador se chama computador? Tendo conhecimento do nome das coisas, faz-se imperioso ter consciência da utilidade das coisas, e saberá que um computador computa (!!!!), pensa em bytes, tem memória, periféricos, programas, linguagem, e é usado para processar textos, efetuar cálculos, editar imagens. Certamente ela não irá mais abri-lo, sentar-se sobre o teclado, apertando todos os botões à mão, divertindo-se com os sons e as figuras que alternam-se na tela. Ela trela, por que não sabe o que é isto.
 
Seria negligência minha se não a ensinasse, se não procurasse todos os dias preencher as lacunas da estante, para que ela tenha para ler todos os livros que devem ser lidos; se não tocasse um rock, um blues, no interlúdio de seus discos infantis; se não me detivesse para olhar uma rosa, rodear um aquário, imitar os pássaros, banhá-la no pacífico e no atlântico, navegar no tiete e escorregar nas cachoeiras de minas, para compor um ser que atinja à aspiração pedida por Goethe, depois de três mil anos tenha o saber, e possa fazer suas próprias escolhas.
 
Papai, mamá! E lá vai a mamãe preparar-lhe o leite, que toma já enrodilhada nos meus braços, um suspiro de satisfação, o desenho de um sorriso nos lábios, olhos fechados, dorme neném, que na ausência de deus (nem isto posso lhe dar), teus pais velam seu sono.

 
Canto de Ninar (Raul Seixas)
 
Nada tão belo como uma criança dormindo
Nem tão profundo como dormir sem sonhar
Nem tão antigo como o sonho dos teus olhos
Nem tão distante como a hora de acordar

Dorme enquanto teu pai faz músicas
Que é a forma dele rezar
Todos os sonhos na realidade
São verdades, se eu puder cantar

Você chora quando tem fome
Mas vem logo uma mamadeira
Amanhã se você chorar
Vai chorar tua vida inteira

Fiz meu rumo por essa terra
Entre o fogo que o amor consome
Eu lutei mas perdi a guerra
Eu só posso te dar meu nome
 

 
Ao Nosso Filho Morena (Oswaldo Montenegro)
 
Se hoje tua mão não tem manga ou goiaba
Se a nossa pelada se foi com o dia
Te peço desculpas, me abraça meu filho
Perdoa essa melancolia

Se hoje você não estranha a crueza
Dos lagos sem peixe da rua vazia
Te olho sem jeito, me abraça meu filho
Não sei se eu tentei tanto quanto eu podia

Se hoje teus olhos vislumbram com medo
Você já não vê e eu juro que havia
Te afago o cabelo, me abraça meu filho
Perdoa essa minha agonia

Se deixo você no absurdo planeta
Sem pique-bandeira e pelada vadia
Fujo do teu olho, me abraça meu filho

Não sei se eu tentei mas você merecia