ORAÇÃO DE UM HIPÓCRITA

Prof. Antônio de Oliveira*

Oro de pé. Sem constrangimento. Cabeça erguida. Peito estufado.

Tenho postura. Não careço ajoelhar-me para implorar misericórdia.

Minhas promessas são apenas de campanha eleitoral, publicitária, demagógica [ato falho], digo, democrática. Não sou como os demais. Dou-vos graças,

Pai Eterno. [Fragmentos da parábola bíblica O Fariseu e o Publicano.]

Sou justo. Veríssimo. Nunca roubei nunca matei.

Não sou como os demais, ladrões, adúlteros, corruptos, corruptores de menores. Nunca desviei dinheiro público nem usufruo de mordomia.

Sei que é uma mentirinha porreta, mas gozo de imunidadezinha. Ficha-suja?

A gente rasga. Faço tudo dentro da lei. Portanto, moral ilibada.

Não faço leis sozinho. Nosso trabalho é solidariamente corporativo.

Não agrego propina a determinadas partes do corpo. A outras, sim.

Mas quando o faço, o Pai Eterno sabe, na sua onisciência, que é por motivo exclusivamente de segurança. Afinal, todo o mundo sabe, cá no Brasil,

ladrão anda à solta. Dizem até que se gritar pega ladrão, não fica um,

meu irmão. Deus me livre! Que país é esse, Cazuza?

Mas até que não tenho do que me queixar, apesar de sempre se poder arranjar mais e mais: meu cargo não precisa nem de descarrego, está homologado pela rubrica “deitado eternamente em berço esplêndido”. O ano de 2009 podia ter sido melhor não fossem uns babacas do PT [não o Partido dos Trabalhadores,

mas o Partido da Transparência]. Por sinal, um partido na clandestinidade,

pois nem registrado o é na Justiça Eleitoral.

Aliás, como homem público, estou estarrecido. Nossos telejornais jorram sangue aos borbotões, tiros explodem televisores. Nem nossa eficiente polícia nem nossa imparcial Justiça conseguem colocar tanto ladrão de galinha na cadeia. E como andam soltos e armados [e mal amados]! Desses amigos do alheio, livra-me, Pai Eterno!

O imposto de renda sabe que quando deixo de declarar uma mansão, a bem da verdade, uma casinha modesta, aqui no bairro Paraíso Fiscal de Brasília, eu deixo de fazê-lo por um lapso. E meu contador nem para me lembrar esses detalhes. Ah! Esses contadores... Além disso [tanto “além disso”...], receita é receita. O bolo vem depois dos ingredientes devidamente dosados, negociados e distribuídos leoninamente. Quem parte e reparte fica sempre com a melhor parte. E todo o mundo sabe que leão é um animal selvagem. Não dá para facilitar. Prefiro nem chegar perto. Mantenho distância. Bobo de quem se deixa abocanhar.

Minha vida é um livro aberto. É verdade que, de vez em quando, surge denúncia, denunciazinha, alguns milhões apenas, marolinha, mas tenho Deus por testemunha, é tudo intriga da oposição, de uma imprensa mafiosa e denuncista, fascista, que prejulga, não prova nada. E, em pouco tempo

– tanto escândalo neste país! – um encobre o outro e deixa tudo empilhadinho na seção DP (Decurso de Prazo). Ninguém nunca provou minha ligação com o jogo do bicho nem com traficantes nem que eu tenha dinheiro no exterior. Também não sou muito de laranja, não ligo muito para minha família [lapso], meus parentes que façam concurso, nem de dinheiro do dízimo... Minha fortuna, dizem, é fruto do infortúnio de muitos. Tudo mentira. Aliás, já disse e repito:

– Esqueçam o que eu escrevi. –

A vida continua. Pela direita, te locupletarás acintosamente.

– Esqueçam o que eu dizia. Era o contexto. A luta continua... –

Quem disse que não? Pela esquerda, te locupletarás aleivosamente.

Pra que juntar tanto dinheiro? Perguntam alguns otários.

Como é bobinho esse pessoal da ética. Até parece ong ambientalista!...

Bom mesmo é lidar com o povão. É verdade, Pai Eterno, que muitos chegam a me tomar como Pai... pai dos pobres. Mas o que fazer? É o reconhecimento sincero e efetivo, em voto, com que esses grandes cidadãos, esses sim, autênticos, me retribuem [outro lapso] as migalhas que eu deixo cair da minha mesa. São gratos. Afinal, não somos gatos, animais; são gente. Nem gatunos. Gente? E há ainda uns poucos que me chamam de coronel de m...

Às vezes até colegas. Mas com colegas me entendo eu, que os conheço. Somos dados a conchavos, digo, acordos. Valeu. Pai Eterno.

Como Sua Excelência o Presidente, todos queremos tirar o povo da m...

Os romanos tinham razão: comamos e bebamos porque amanhã morreremos. Coisa boa é uma mordomiazinha... Só reclama quem não tem. Por isso é que eu não reclamo. Pelo contrário. São tantas as emoções, tantas as graças recebidas. O ano de 2009 foi muito bom para mim. O de 2010 já está no orçamento da união de excelências, pares e ímpares, ocasião em que governo e oposição se entendem.

Tende piedade, Senhor, dos otários porque, segundo dizem, merecerão o reino dos céus. Eu, por mim e por via das dúvidas, estou garantindo o meu aqui na terra. Assim foi. Assim é. Assim seja. Assim será.

Por favor, Pai Eterno, esta oração não é corrente nem pode ser publicada em Cartas à Redação nem na seção Graças Alcançadas, muito menos na internet. Melhor ser discreto. Transparência neste país é crime. E não se abre o coração nem no Natal.

Assinado, Hipócrita, digo, Hipócrates. Não é mesmo esse o nome de um famoso... médico? Ah! deixa isso pra lá. Que história é essa de benfeitor da humanidade? Em tempo: me esqueci de tratar Deus de Vossa Excelência. Desculpe-me Vossa Excelência da minha falha (que não é sempre técnica, como a da Globo). Apenas este... um pecadinho de nada!

Agora, assinado de verdade: Coronel de m...

*Coordenador e Supervisor da Consultoria Acadêmico-Educacional (CAED). Técnico em assuntos educacionais há 30 anos, com experiências no serviço público e na atividade privada. Mestre pela Universidade Gregoriana de Roma. Realizou estágio pedagógico em Sèvres, França. É graduado em Estudos Sociais, Filosofia, Letras, Pedagogia e Teologia. Pesquisador e consultor, presta assessoria, dentre outras instituições, à ABMES, Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior, sendo responsável pela montagem do Anuário de Legislação Atualizada do Ensino Superior. Ministra também cursos de legislação do ensino superior.

aoliveira@caed.inf.br - www.caed.inf.br

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 01/01/2010
Reeditado em 01/01/2010
Código do texto: T2005919
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