A deusa que não chegou ao "céu"
Aos três aninhos, Alice era uma linda criança. De pele rosada, cabelos loiros e cacheados, tinha os olhos azuis, quase lilás, herdados da mãe, uma gaucha nascida na fronteira com a Argentina.
A garotinha era bastante esperta, falava com desenvoltura e até lia frases curtas e esboçava alguns traços em seus desenhos infantis. De tão primorosa, chegou a ter o nome cogitado para apresentar programa televisivo para crianças da sua idade.
A emissora de televisão desistiu do contrato em virtude do exagero cobrado pelo pai para transformá-la em celebridade mirim, uma moda perniciosa ao desenvolvimento comportamental de “pequenos gênios”, como Alice.
A menina crescia em beleza e formosura. Boa aluna, estudiosa e responsável, era orientada por psicólogos e pedagogos que a instruíam para o futuro. Os exemplos das modelos desfilando nas passarelas de Nova Iorque, Milão e Paris, suas conterrâneas de sucesso vertiginoso e bem remunerado, eram imitados e perseguidos com a certeza cintilando nos olhos dos pais e produtores.
Alice chegou aos quinze anos em forma de anjo ou da divindade grega Afrodite, a deusa do amor e da beleza. Pouco se podia exigir dela para aumentar-lhe o encanto físico. Talvez Venus e La Gioconda, se a vissem, “morreriam de inveja”, dizia o seu costureiro predileto, Júpiter da Silva, considerado o deus de todos os deuses da alta costura.
Um ícone da moda tupiniquim com acesso às passarelas internacionais.
No glamour dos desfiles, o amor despontava célere em seu coraçãozinho de menina-moça; mais moça que menina, principalmente se o corpo esbelto, o rosto perfeito e as pernas longas e torneadas fossem mostrados como mimo dos deuses a nós, pobres mortais.
Alice, a “maravilhosa”, recebeu o título para enaltecer sua beleza ímpar. A designação assemelhava-se às concedidas aos jogadores de futebol, por seus desempenhos em campo. “Rei, fenômeno, imperador, nada representam, comparados ao carinhoso epíteto que a impressa deu à nossa deusa”, disse, certa vez, Júpiter, seu guru e mentor de sucesso.
Certo dia, após uma noitada para comemorar o êxito de um desfile garboso em uma das pistas mais famosas do mundo da moda, Alice bebeu demasiadamente. Caiu nos braços de Baco como se aquela festa maravilhosa fosse a última.
Chegou a sua residência dirigindo o próprio carro, último modelo de expressiva marca internacional.
A mãe a recebeu à porta.
Constrangida, retirou-lhe dos ombros o rico casaco, confeccionado com a pele de uma espécie criada em cativeiro, guardou seus pertences pessoais e a chave do carro, que mais tarde seria depositado na garagem lotada de outros modelos, não menos estilosos, confortáveis e invejados por grande parte dos mortais.
Algum tempo depois, Alice insistia com a mãe pela chave de algum veículo, pois pretendia retornar à festa. A mãe não permitia que saísse a dirigir em estado etílico tão preocupante e perigoso. Previdente, quando a filha adentrou o quarto, localizado no segundo andar do apartamento, fechou a porta para salvaguardar-lhe o estado físico, a saúde ou a vida dela e de pessoas que eventualmente cruzassem o caminho da bela modelo.
A jovem, percebendo a manobra materna, retirou de um pequeno bauzinho dourado uma das chaves reservas dos veículos estacionados na garagem. Tentou o trinco da porta: fechada! Abriu a janela, ultrapassou o portal, procurou apoio para os pés, e despencou janela abaixo.
Espatifou-se no chão de concreto.
A queda partiu-lhe ossos da face, do crânio, das pernas, deformando-lhe o corpo perfeito, vitimado pelo excesso de bebidas alcoólicas no embalo festivo para onde pretendia voltar.
Não deu.
Pobre Alice, que hoje vive deformada, em estado semivivo, a depender de terceiros para satisfazer-lhe as necessidades físicas.
O excesso é sempre prejudicial.
De álcool, pior ainda.